O JULGAMENTO I
Ontem Eu era Ele
mas nunca fiquei preocupado
em ser o que Sou agora
... não temo
nem tremo ao dizer tudo
o que ele pensou
disse
e fez no passado
Abram-se as portas do fórum
Supremo Tribunal
de um singular Juiz
Que seja o seu auditório
franqueado ao público
e a imprensa se localize para documentar
organizem-se as tribunas
inclusive a da Meritíssima Juiza
Instale-se ali a cadeira do réu
minha, ou dele!
Dele,
porque é ele que precisa dizer a verdade
para que possa ser absolvido
ou condenado
Acolar seja posta uma cadeira
porque vai ser lá
a cabine das testemunhas
e sejam esvaziados os corredores
dos senhores Advogados
e Promotor
Agora aqui sobre essa mesa:
a Bíblia Sagrada
vai receber a juramento da vítima
que vai ser julgada
Pronto!
Senhoras e senhores, levantem-se!
Que a Meritíssima vem chegando
- assentem-se!
Assim disse a Digníssima Magistrada
que, descendo à mesa do peito
sentou-se na cadeira do coração
e revendo os autos - pegou o martelo
e disse:
Está aberta a seção
Em seguida
o réu foi convidado à bíblia
para jurar:
dizer a verdade
- Só a verdade
e ele jurou
ser o próprio juiz de si mesmo
E ali estava um homem
recapeado de falhas
subdividindo-se
num imenso corpo de jurisprudência
recompondo-se como um magnífico
ou quem sabe
- um sincero tribunal sem fantasia
que entre erros e acertos
reconhece não está equilibrado
Portanto, intimou-se a comparecer
ao tribunal de justiça
do seu próprio ego
e dentro desses poucos segundos
está ele aí
aposto na sala de justiça
onde a sua corte já está reunida
e pronta para o submeter
ao primeiro julgamento da sua vida
... e é uma hora qualquer
mas essa hora ainda não chegou
e ele já sentou-se na cadeira dos réus
e o júri está em si mesmo
e será todo ouvido
O Promotor é democrático
- chama-se: Desejo
e é transparente nas suas acusações
Um dos seus advogados
exatamente o de defesa
é feminino
e chama-se: Razão
... mas o outro
chama-se Pensamento
e também o acusa
tanto quanto o Promotor
O seu júri
geneticamente
é composto de homens e mulheres
mas creio serem justos em seus veriditos
não pela meritíssima juíza
também ser feminina
mas simplesmente
por se chamar consciência
Silêncio! Bem alto assim disse ela
dou por iniciadas
as atividades desse tribunal
nas pessoas dos senhores jurisconsultos
aqui presentes
e senhoras
e senhores do corpo de jurado
- Com a palavra o senhor Promotor
- Obrigado Meritíssima
e levantou-se o Desejo
ainda fazendo vênia
à Meritíssima
disse:
Eu na qualidade de magistrado oficial
desse ministério privado
quero tornar público
todos os atos
de desabonos de conduta
desse réu aqui presente
... e ao dizer isso
olhou à frente
os lados
depois virou-se para trás
e num gesto neutro
ou de quem reprovava o réu
nos seus erros
- falou novamente
... Senhoras e senhores
desde o primeiro mes de 1944
o réu vem se acometendo em falhas
- umas até bem duvidosas
- outras um pouco absurdas
Não sei se todos observaram
mas até mesmo no momento de jurar
sobre a bíblia
em dizer a verdade
somente a verdade...
observa-se pela sua mão fechada
em cima do Livro Sagrado
e isso é um desrespeito
- Protesto! Meritíssima!
Protesto aceito
Pode falar...
Meritíssima
a mãe dessa inocente criatura
era a mulher de um lavrador humilde
e ela
o ajudava nas labutas do roçado
e quando uma vez o ajudava
numa dessas lidas
lá pelos meados de agosto
de 1943
... ela acidentalmente
o machucou num garajau
ainda em seu ventre
tornando-se assim
um deficiente nato...
- ... como verem os senhores
O seu braço
e a sua mão direita
- sem tato e sem dedos
Inclusive a sua perna esquerda
que em outubro de setenta e dois
inocentemente perdeu
para os açougueiros da medicina
assim disse a Razão
e terminou dizendo:
Obrigado
E a Consciência
sendo a meritíssima juíza
- alevantou (a cara) o rosto
abriu os seus olhos e a visão
Viu à sua frente
a estátua
que por um mero acaso
a cognominaram de justiça
e quis aborrecer-se
mas majestosamente controlou-se
e disse:
Prossiga promotor
prossiga
E só deu tempo o promotor dizer
obrigado,
logo foi interrompido
pelo seu colega de magistério
- o Pensamento
que logo em seguida
disse:
Meritíssima,
antes que o caro colega promotor
acuse este cidadão
do miserável erro de gula
e como indiciado
na perturbação do sossego
de outrens
E em seguida
na cobiça
e na irreverente desobediência
desde quarenta e quatro
... necessário se faz
'que a senhora saiba que'
obviamente foi ele
quem o induziu a tudo isso
e ... continue - continue
disse a juíza
... perdão!
Perdão meritíssima
pois não é da minha alçada
acusar esse moço
que aos meus olhos até então
tem sido um cidadão exemplar
civicamente democrático
e só tem feito
o que as leis lhe permitem
e a própria sociedade aplaude
... Obrigado
nobre colega
obrigado
- pode reiniciar as suas acusações
... obrigado doutora
um pouco desconfiado
assim agradeceu o promotor que
recomeçou dizendo:
Entre mil novecentos
e quarenta e nove
- e mil novecentos
e cinquenta e um
o réu levantou-se
e falou mais mentiras
do quê
a própria verdade exigia
Nessas mesmas datas
os seus pais e os seus avós paternos
o levaram para o Maranhão
mas nem mudando de estado
foi possível mudar a sua conduta
Em mil novecentos e cinquenta e dois
foi quando então
se acometendo
aos primeiros erros juvenis
e de adolescência
deu também assiduidade
aos primeiros passos nos vícios iniciais
Fumou os primeiros cigarros:
Princesa e Astória da Sousa Cruz
todos eles roubados
da quitanda do seu tio e padrinho
Cena que se repetia
sempre aos dias de domingo
ocasionalmente à tarde
usando um buraco na parede de taipa
feito pelos porcos!
Nisso se ergueu a Razão
e com a mão espalmada na vertical
solicitava aos colegas
e principalmente a Meritíssima juíza
- uma breve palavra.
E por um segundo
o silêncio se fez viver
e a Meritíssima a ordenou que falasse
e ela disse:
Senhoras e senhores
caros colegas
e Meritíssima juíza
... todos nós ouvimos o que disse
o nosso nobre colega Promotor
- Nada mais normal
que um adolescente ter essas curiosidades
desde que não sejam excessivas
para nunca me excluir dos seus atos
das suas palavras
nem dos seus pensamentos
porque sem mim
ou sem eu
o equilíbrio de qualquer um morrerá.
Obrigada!
Nisso a Consciência
Meritíssima juíza - bateu o martelo
e deu alguns minutos de intervalo
para todos
... e a sala
inclusive o auditório esvaziou-se
e em poucos segundos
o silêncio tomou conta do tribunal
e quando despertei
estava em mil novecentos
e cinquenta e quatro
No dia seguinte
pela manhã o tribunal já estava cheio
- A Vontade era uma testemunha
e obviamente
após ter jurado dizer a verdade
já se preparava para falar
quando o Promotor o interpelou:
Dona Vontade
aonde estava a senhora
no entardecer do terceiro domingo
de agosto
de mil novecentos cinquenta e quatro
e ela respondeu:
- Eu e ele tínhamos a mesma idade
portanto
quase sempre andávamos juntos
... E naquele dia
eu estava bem próximo a ele
quando de repente o Querer
por ser um outro amigo nosso
o empurrou para dentro da quitanda
e o fez roubar cigarros
e fósforos
inclusive balas e chicletes
Depois fugimos para um matagal
que existia atrás da venda
Morávamos no interior
e a rua lá era uma só
a estrada carroçal bem no meio
... era como se fosse
uma avenida
casas de um lado e outro
e um longo caminho de areia ao meio
a paz e a tranquilidade
reinavam ali
Então ficávamos lá entre as noites
às vezes por um longo tempo
- Eu e o Querer
nem triscamos nas coisas que ele tirou
mas ele só saiu de lá
quando devorou tudo
- os cigarros
os bombons
os chicletes e até mesmo o fósforo
... Ele riscou um
palito
e incendiou todo o restante
que ainda havia na caixa
... e depois
o que mais fez o réu
assim perguntou o Promotor:
Mas antes que a testemunha respondesse
a Meritíssima juíza virou-se
e disse:
- A senhora só responde se quiser
... então dona Vontade a obedeceu
e o Promotor agradecendo
a mandou que se levantasse
Mas pedindo permissão a Meritíssima
aproximou-se da sua tribuna
e a confidenciou
- Mas,
Meritíssima!
Ela e o Querer
são cúmplices do réu!
E a juíza o disse:
E o senhor não o é!
E novamente bateu o martelo
dando mais dez minutos de intervalo.