Agostinho – A Cidade de Deus.
Dois amores construíram duas cidades. O amor a si até o
desprezo de Deus, a cidade terrestre. O amor a Deus até o desprezo de si, a
cidade celeste. Uma glorifica a si mesma, a outra no Senhor.
3 O Homem e a sociedade na concepção de Santo Agostinho
Ao longo deste terceiro capítulo se verificará que a reflexão do sábio teólogo
a cerca do homem se confunde com sua experiência pessoal de busca, inquietação
e anseio pela verdade. O homem dotado de liberdade e vontade carece portanto da
graça divina para optar pelo bem. A liberdade foi concedida ao ser humano para
que ele procurasse a Verdade com mais confiança e afinco. Porém, agindo contra
si mesmo e o seu Criador, o homem optou pelos seus próprios caminhos. Com isso,
sua natureza tornou-se fraca e débil. A imagem da Cidade Terrestre e da Cidade
Celeste, representa o critério que o pastor de Hipona usou para dividir a
história da humanidade. Doravante desde o pecado de Caim, a Torre de Babel, a
fundação de Roma, todas as guerras e revoltas da humanidade são frutos do amor
concupiscente. O único amor capaz de sustentar os projetos humanos é o amor de
Deus. 3.1 A Origem e o Conceito de Homem O doutor de Hipona, quando define o
homem, faz questão de distingui-lo das outras criaturas pela racionalidade, ou
seja, capacidade intelectiva. Santo Agostinho afirma que o ser humano é
portador de uma alma imortal. Para ele, esta é responsável pelo governo das
faculdades humanas. Na sua explanação sobre a origem do homem, o teólogo hiponense
assegura que o ser humano teve sua origem em Deus, único capaz de preencher as
expectativas terrenas e celestes que todo homem traz consigo. Isso o exímio
teólogo sempre ensinou. Ele tinha como base sua própria história pessoal. O
santo pastor depois de sua conversão ao cristianismo passou a assegurar que
somente em Deus está a autêntica felicidade. Observando a vasta obra da
criação, nela sobressai o homem que ocupa um lugar singular no plano de
Deus.103 O ser humano e o universo inteiro tiveram sua origem na bondade do
Criador. O pastor de Hipona deixa claro nas suas obras que o ser humano é
composto pela união da alma e do corpo. Segundo esta linha de pensamento
agostiniana, o 103 Os platônicos afirmavam que a Criação fora realizada de
maneira hierárquica, ou seja os deuses inferiores, anjos foram formados por
Deus (Superior). Por sua vez os inferiores teriam criado os animais e os
homens. Deles recebendo a parte mortal, enquanto a imortalidade dependia do
Deus Superior. 103 Ibid., p. 369 52 homem não pode ser estudado e nem
compreendido na sua totalidade sem estas duas dimensões. Este ponto é frisado
por Santo Agostinho no diálogo com Navígio, onde explicita sua doutrina acerca
desse assunto: “Parece-vos evidente que somos compostos de uma alma e de um corpo?
Como todos concordam, exceto Navígio que declarou ignorar esse assunto, eu
disse-lhe: Não sabes nada, absolutamente... Sabes igualmente que tens um corpo?
Concordou. Já sabes, portanto, que és composto de um corpo e de uma alma”.1 Ao
mesmo tempo em que o teólogo da graça defende a tese de que o homem tem um
lugar de destaque no mundo criado, ele não nega a existência das limitações que
o homem possui. Foi por desígnio de amor que Deus trouxe o ser humano à vida.
Tendo sido criado do nada, a Criatura busca o Absoluto que é Deus. Isso explica
o motivo da inquietação do homem. Nenhuma realidade deste mundo pode satisfazer
o desejo de paz que pulsa no coração humano. Santo Agostinho viveu intensamente
este itinerário. Quando fala dos problemas do homem o seu relato confunde-se
com sua experiência pessoal. De fato, o homem é a única criatura no cenário da
Criação que é capaz de Deus. Tem no seu âmago a vontade de comunhão -
dialogante com Deus - Criador. O conceito Agostiniano de homem está
fundamentado nas Sagradas Escrituras e na própria busca incessante da verdade
absoluta do homem Agostinho. É a partir de si mesmo, da sua descoberta de Deus
que o pastor de Hipona encontra a resposta para seus dramas e interrogações.
Sua visão antropológica está toda permeada por uma caminhada marcada pelas
lutas, paixões e desilusões que deixaram profundas cicatrizes na sua alma. Para
entender a concepção agostiniana de homem, é necessária rever a trajetória
percorrida pelo homem Agostinho. No doutor da graça, encontra-se um retrato
completo do homem de seu tempo e de todos os tempos. Isso se deve ao fato de
que o teólogo hiponense viveu intensamente sua humanidade, sobretudo quando
aderiu à fé. Somente depois que abraçou a pessoa e a mensagem de Cristo, “O
Deus que se fez homem,” é que Agostinho realmente se encontrou. Foi nesta
circunstância que seu espírito especulativo e ansioso viu-se inundado pela luz
da Suprema Verdade. Desse modo, adquiriu a chave que o libertou da escuridão do
pecado em que estava. Como se percebe, o santo hiponense tem consciência da 1
De Beata Vita 12, 7. 53 dignidade do homem. Contudo, isso não o impede de
reconhecer os defeitos da natureza humana. Na concepção Agostiniana, a
atividade política nem sempre consegue salvaguardar a paz e a concórdia dos
cidadãos devido às conseqüências que o pecado imprimiu no homem. Claro que esta
lucidez do teólogo de Hipona sobre os desvios morais que o ser humano é capaz,
deixaram um rastro de pessimismo na sua doutrina ético-política. Mas não
anularam o ideal que ele apregoa da construção de uma sociedade pautada pelos
princípios da justiça. Sendo que isso só se tornará uma realidade quando os
cidadãos da polis derem a Deus o lugar que lhe compete na vida em sociedade.
Como já se disse anteriormente, para Santo Agostinho, Deus deve estar em
primeiro plano na ordem do amor. Quando disserta sobre o homem, o bispo de
Hipona não contempla a pessoa humana apenas na sua individualidade. Ele estuda
o ser humano dentro de um contexto social. Aliás, jamais o homem no pensamento
agostiniano é apresentado sem o vínculo da sociedade. A antropologia do exímio
teólogo de Hipona está profundamente enraizada na fé e no relacionamento com o
próximo. É no convívio em sociedade que o homem torna-se cada vez mais pessoa.
Cada ser humano traz consigo a imagem de Deus. Porém, pelo pecado carrega em si
as marcas do pecado original. Daí vivendo em meio aos bens materiais que
proporcionam a felicidade temporal o homem não deve perder-se no transitório.
Há uma outra felicidade que é permanente que é Deus. Santo Agostinho afirma que
o ser humano por si mesmo não tem condições de obter vitória nessa luta
enquanto não mergulhar na palavra de Cristo. Na concepção agostiniana, existe
uma espécie de homem interior e exterior. O santo pastor descreve que o homem
interior seria aquele que transparece no que se tem realmente de humano. No
íntimo do ser há o encontro da pessoa consigo mesma e com Deus. O homem
exterior é representado por aquilo que se assemelha aos impulsos e instinto dos
animais. É muito freqüente se deparar no pensamento de Santo Agostinho com as
expressões superior e inferior bem como “íntimo e summo”. Isso significa o
itinerário da procura humana do ser absoluto que é Deus.2 O homem foi criado
com o desejo de buscar o Criador. Para isso, deve cada vez mais fixar seu olhar
2 Cf. NOVAES, Moacyr. O Exame da Temporalidade Humana Em Agostinho. Cadernos da
Cepame, V. 1, p.29-41 mar-jun. 1992. 54 no alto. Ao contemplar as maravilhas da
Criação, a matéria precisa ultrapassar o limiar terreno para chegar a conhecer
os valores absolutos que lhe transcendem. Pode-se concluir que a antropologia
de Santo Agostinho só pode ser compreendida sob o prisma da fé e do equilíbrio
entre o individual e o social acrescido da perspectiva do homem visto como peregrino
do absoluto. Vivendo entre o relativo e o efêmero, o ser humano só será
plenamente realizado na medida em que não buscar nos bens mutáveis a felicidade
verdadeira. Isso consiste no uso deles como um meio relativo e não um fim
absoluto. 3.1.2 A Questão da Felicidade Como já acenei no tópico anterior, o
santo pastor de Hipona explica o enigma do homem com o auxílio da fé depois de
sua própria experiência pessoal. Como se sabe, a felicidade em Santo Agostinho
sempre ocupou uma importância relevante. Ela, antes mesmo de sua conversão, já
era algo pertinente nas suas buscas especulativas. Não se pode estudar o homem
sem contudo saber como ele encontrará a felicidade e em que ela consiste. Na
doutrina agostiniana sobre a felicidade, encontra-se a raiz do seu pensar
filosófico e teológico. De fato, o “Finis Bonorum”, para o santo pastor, é a
meta de todo ser humano. Até quando erra o homem está buscando, ainda que de
forma desvirtuada, este bem.3 Contudo, para o bispo de Hipona somente os bons
experimentam ou alcançam esta felicidade. Ele não hesita em afirmar que o homem
só terá felicidade quando possuir o Sumo-Bem Deus. A questão da felicidade
esteve sempre patente no pensamento do santo hiponense. De fato na sua
doutrina, ela ocupa especial destaque. Não se trata apenas de um sentimento
vago, pelo contrário, a felicidade em Santo Agostinho é um bem, estado de alma
permanente que não se deixar perturbar facilmente. Aliás, Deus é a segurança
daqueles que vivem unidos a Ele. Para o exímio teólogo a felicidade não é algo
abstrato embora também não consista exclusivamente no uso dos bens materiais.
Toda atividade humana tende para ela. Nesse ponto, ele dá ênfase ao pensar
filosófico. A filosofia e a felicidade andam 3 Cf. Ep. 130, 4, 9. 55 juntas,
pois o filósofo autêntico busca incansavelmente a felicidade.4 Nesta procura,
acaba encontrando a Deus, pois somente Ele faz verdadeiramente feliz o ser
humano.5 Se o filósofo é o amigo da sabedoria, então deve amar a Deus, pois o
outro nome de Deus é sabedoria. Na visão Agostiniana, o conhecimento por
excelência é Deus. Sem conhecê-lo é impossível que o homem seja plenamente
realizado, tendo em vista não haver outro caminho pelo qual o ser humano possa
encontrar a satisfação de suas aspirações mais profundas. Todo itinerário da
busca agostiniana tem um objetivo, uma meta. Santo Agostinho ao propô-la não se
perdeu em divagações desnecessárias. Para ele, a razão dessa procura é Deus. O
problema consiste em saber como e onde encontrar esta felicidade: “Então, como
Vos hei de procurar, Senhor? Quando Vos procuro, Meu Deus, busco a vida
feliz... como procurar então a vida feliz? Não a alcançarei enquanto não
exclamar: Basta, ei-la! Mas onde poderei dizer estas palavras?”6 A causa e a
origem dessa procura da felicidade está no interior de cada homem, pois foi o
próprio Criador que deixou na mente das suas criaturas humanas o desejo de
procurá-lo.7 Contudo, Santo Agostinho sabe que essa felicidade nunca será plena
na terra. A consumação da comunhão definitiva com Deus só se dará no céu: “A
felicidade segue o mesmo caminho que a salvação, o da esperança. E como a
salvação não a temos já, nós a esperamos futura, assim se passa com a
felicidade (...) A salvação da outra vida será, por conseguinte a felicidade
final. E os filósofos, que não querem crer porque não vêem, forjam a seu
talante, fundados em virtude tanto mais enganosa quanto mais soberba, o
fantasma da felicidade terrena.”8 È evidente que essas palavras do pastor
hiponense não significam desprezo pela vida presente, já que nessa não se
encontra a felicidade completa. Pelo contrário, o santo pastor vê nesta vida
uma ocasião excelente de se viver antecipadamente a sabedoria que consiste em
praticar o preceito cristão “Amar a Deus acima de tudo e ao próximo como a si
mesmo”. Enquanto este mandamento divino não estiver no centro dos pensamentos e
das resoluções dos homens, a felicidade temporal e eterna dos indivíduos e da
sociedade tornar-se-á impossível. Nosso doutor volta a dizer que 4 Cf. De Civ.
Dei VIII, 91. 5 Cf. Ep. 155, 2. 6 Conf. X, 20. 7 Cf. Conf. III, 6. 8 De Civ.
Dei XIX, 4. 56 se o homem não ama a Deus será utópico o amor a si mesmo e aos
seus semelhantes. Do amor ao Criador se desdobra o autêntico serviço a
comunidade. Para isso, o exímio teólogo aponta o caminho das virtudes cardeais
que ele chama de “vera pietas” que nada mais é do que a vivência das quatro
virtudes cardeais: prudência, fortaleza, temperança e justiça. No pensamento
agostiniano quando essas virtudes são levadas a sério, elas resumem a vida do
homem piedoso que se esforça por amar o que deve ser amado. O exercício dessas
virtudes está direcionado para o Sumo-Bem que praticando-a já possibilitam aos
homens e à sociedade a concórdia e a paz. Na carta ao governador Macedônio, o
doutor de Hipona deixa claro a necessidade de um homem de Estado procurar
conservar a verdadeira piedade. Dela depende o êxito do bem-comum. Vejamos:
“Então, se toda a tua prudência, com que te esforçar por procurar o bem comum
das coisas humanas; se toda a tua fortaleza, com que te mostras corajoso em
afrontar a maldade dos adversários; se toda a temperança, com que sabes
preservar-te da corrupção em meio à lama dos mais depravados costumes humanos;
se toda a justiça, com que julgando retamente dás a cada um o que é seu; se
digo todas essas virtudes, como não será autêntica a felicidade deles... se a
tua administração repito de qualquer espécie que seja, dotada das virtudes
mencionadas, tem por único escopo preservar as pessoas de qualquer injustiça e
moléstia física, e não reputas ser teu dever preocupar-te com o fim ao qual os
mesmos façam servir esta tranqüilidade... De que modo adorem o verdadeiro Deus,
no qual reside todo o gozo de toda vida tranqüila, todos os teus esforços de
nada te serviriam para alcançar a verdadeira felicidade”.9 Como se percebe, a
felicidade do homem e da sociedade tem a mesma fonte. Ela dimana da comunhão
profunda dos governantes e dos governados com o Sumo-Bem. A felicidade não se
limita apenas a um sentimento de bem-estar físico e a uma sensação de satisfação
material. Ela engloba toda a pessoa. Ainda que a atividade política pareça ou
tenha funções que digam respeito a problemas puramente terrenos, ela deve
abrir-se para o absoluto. Afinal, ela visa o bem-comum dos cidadãos e estes por
sua vez anseiam pelo transcendente. Daí aqueles que exercem cargos públicos não
podem permanecer indiferentes ao fim último do homem. Isso sem descuidarem do
bem-comum que consiste em buscar concórdia e a paz dos cidadãos. Do contrário,
correram o risco de se perderem nos males desta vida procurando apenas a si
mesmos. 9 Ep. 155, 10. 57 A felicidade do indivíduo nesta terra é apenas
parcial como a da sociedade. Contudo, a concretização dela na pátria celeste
está condicionada à prática da vera pietas que tem no seu centro a exortação
agostiniana: “Beatus populus cujus dominus Deus ipsius”. Conclui-se que somente
Deus pode proporcionar a felicidade ao homem singular e coletivo.10 A
felicidade na doutrina Agostiniana seja ela individual ou coletiva, pode muito
bem ser sintetizada na expressão “Frui Deo”. Ela significa a comunhão plena da
criatura com o Criador. É participar da vida do próprio Deus. Evidentemente que
para experimentá-la o homem necessita da fé. Sem ela, é impossível encontrar a
felicidade. Santo Agostinho dirá muito após depois da sua conversão, que a
beata vita não se identifica com qualquer prazer ou satisfação mundana: “Longe
de mim, Senhor, longe do coração do teu servo, que se confessa diante de ti,
longe o pensamento de que uma alegria qualquer possa torná-lo feliz. Há uma
alegria que não é concedida aos ímpios, mas aqueles que te servem por puro
amor: essa alegria és tu mesmo. E esta é a felicidade: alegrar-nos em ti, de ti
e por ti. É esta a felicidade, e não outra. Quem acredita que exista outra
felicidade, persegue uma alegria que não é a verdadeira. Contudo, a sua vontade
não se afasta de uma certa imagem de alegria.”11 Como se percebe, a partir
dessas palavras do exímio teólogo, o desejo incessante de felicidade está
gravado em todo ser humano. Ele foi impresso pelo próprio Criador. Porém, Deus
não se impõe. Ele deixa livremente que os homens o busquem se deixando
encontrar por aqueles que o procuram de coração sincero. E como já fora
mencionado anteriormente, isso se realizou plenamente na vida de Agostinho. As
várias escolas filosóficas da antigüidade perseguiam e almejavam a
felicidade,12 porém divergiam quanto ao seu verdadeiro significado. A conversão
de Agostinho trouxe uma luz que veio proporcionar às indagações dos filósofos
mais clareza acerca do problema da felicidade. De fato, depois de inúmeras
frustrações de ter buscado ser feliz em tantos gozos afetivos e mundanos,
Agostinho constatou que a felicidade por excelência é um Deus. Ele se chama
Cristo. Assumindo a natureza 10 Cf. RAMOS, Francisco M. Tomás. Op. Cit. P.
152-153. 11 Conf. X, 22. 12 As escolas filosóficas coincidiam em afirmar que o
bem máximo era a chamada beatitude. Também para Agostinho os homens procuram a
própria eudaimonia. Ela poderia ser alcançada segundo as correntes de filosofia
clássicas com o prazer, prática da virtude, ou a procura da verdade. 58 humana,
tornou acessível o caminho da felicidade. Aliás, Ele é a própria via que conduz
os homens para a realização plena de suas aspirações. A sabedoria consiste em
andar com Cristo, pois somente deixando-se iluminar por Ele o ser humano
encontra a vida feliz. Na doutrina agostiniana a felicidade já começa quando o
homem se dispõe a buscar Deus seguindo as pegadas de Cristo. Viver bem é
procurar exclusivamente a Deus, praticar o amor caritas que consiste em amá-Lo
sobre todas as coisas e servir ao próximo com sinceridade. Em outras palavras,
se poderia dizer que somente a vivência autêntica do cristianismo possibilita
no aqui e agora um certo antegozo da felicidade definitiva na pátria celeste. O
homem que peregrina sobre a Terra, segundo Agostinho, só saberá o que é a
felicidade quando abrir sua mente e seu coração para a sabedoria eterna que é
Cristo. Aliás, a felicidade como tal está profundamente associada e
condicionada a “vera religio” que o pastor de Hipona defende com firmeza. Neste
sentido, a própria filosofia acabará por se identificar com a verdadeira
religião. O homem de bem para o santo teólogo é aquele que aprecia a sabedoria
que os autênticos filósofos investigam e vêem no Filho de Deus sua suprema
revelação. Não esquecem, porém, que a doutrina trazida por Cristo é portadora
de princípios que ultrapassa o individual e lançam luzes sobre a ordem social,
pois o homem é sempre um ser sociável. Filosofia e religião devem trabalhar
juntas. E se realmente forem verdadeiras proporcionarão aos homens o caminho
seguro que facilitará a implantação da concórdia e da paz. A vera religio é
vista por Santo Agostinho como único meio de libertação dos males individuais e
sociais da humanidade.13 No pensamento Agostiniano, é ela que ligando o ser
humano com Deus levá-o a amar de verdade desvencilhando-se do egoísmo
desenfreado. A prática da verdadeira religião, que consiste no culto do único
Deus de Abraão, vence as tendências supersticiosas dos habitantes da Cidade
terrena. Ela, quando é vivida intensamente, constitui uma bênção, pois é o
fundamento da Cidade Celeste.14 Nela reina a paz e a justiça porque se dá a
Deus o que o é Dele. Os que peregrinam neste mundo e se sentem chamados a promover
a concórdia e a paz, ou seja o bem comum, devem olhar para a harmonia que já
existe entre os cidadãos da cidade do alto. Ela não é resultado apenas do
esforço humano e fruto de negociações puramente racionais. Lá já se vive sobre
o 13 De Quant. Animae XXXIV, 78. 14 De Civ. Dei IV, 1. 59 prisma da justiça,
porque seus membros se amam em Deus e por isso se ajudam mutuamente. A “religio
christiana”. que tem seu ponto focal em Cristo, possui em plenitude todos os
meios que os homens necessitam para possuírem a felicidade. Para o exímio
teólogo, não há outra via pela qual os seres humanos possam abraçar a verdade.
Na doutrina agostiniana, já se pode, desde o exílio desta vida buscar com fé e
humildade: “O verdadeiro mediador, que tua insondável misericórdia manifestou e
enviou aos homens, a fim de que aprendessem a humildade a exemplo dele, este
mediador entre Deus e os homens é o homem Jesus Cristo. Ele se apresentou entre
os pecadores mortais e o justo imortal como os homens e justo como Deus.”15
Dessas palavras do santo Pastor, conclui-se que Jesus Cristo é a única
felicidade dos homens. É da prática de seus preceitos que desabrocham para a
sociedade toda as graças; sem Ele é impossível que alguém seja feliz nesta vida
e muito menos justo com seus semelhantes. A lei que Ele instaurou no mundo,
amar a Deus e ao próximo como si mesmo, é a grande máxima da felicidade. Uma
sociedade que deseja livrar-se do individualismo exacerbado não deve fechar-se
para Cristo. O mal da injustiça e das desigualdades sociais só será sanado
quando a ânsia de enriquecer-se de alguns for vencida pelos propósitos de
servir. Se os homens não aderirem aos princípios da beata vita, aqui e agora
nunca viverão em paz consigo e com os outros. O resultado será a perca da
felicidade temporal que acarretará a infelicidade eterna. 3.2 O problema da
Liberdade e da Vontade 3.2.1 O livre-arbítrio e a Liberdade no Pensamento
Agostiniano Como já me referi ao princípio do Uti-Frui no capítulo dois, agora
se faz necessário explanar em que consiste o livre-arbítrio e a liberdade e
qual a diferença existente entre ambos. Em primeiro lugar, o bispo de Hipona
afirma categoricamente que o ser humano é portador de uma vontade individual.16
Ele a denomina de liberum arbitrium. Segundo sua linha de raciocínio, ela é que
faz os homens responsáveis por 15 Conf. X, 43. 68. 16 Cf. Conf. VII,3. 60 seus
atos. Essa faculdade constitui, para o Santo teólogo um dom extraordinário que
o Criador concedeu à criatura racional.17 Para Santo Agostinho, o homem possui
uma vontade que em si mesma não tem nada de bom ou ruim. Ela torna-se péssima
ou boa de acordo com a opção que o ser humano faz. As reflexões e conclusões do
bispo de Hipona, sobre o papel do livre arbítrio no que diz respeito as coisas
que o homem deve fruir ou utilizar, trouxeram uma profunda reviravolta. Até
então, predominava a tese de Aristóteles segundo à qual o exercício da vontade
comportava, necessariamente, uma ação na polis. Já o doutor de Hipona defende
que a capacidade da vontade de escolha está associada ao âmbito da
interioridade humana. Isso veio significar que a liberdade é algo que deve ser
vivido em primeiro lugar no interior do homem. Antes de executar uma ação, ela
já fora decidida no foro da consciência, ou seja no seu interior. Contudo, não se
pode discorrer sobre a vontade no pensamento agostiniano sem falar sobre o mal.
O problema da origem do mal dominou sempre as especulações acadêmicas de Santo
Agostinho. Ele desejava saber onde se encontravam as razões do mal. Partindo do
princípio de que Deus era Bom, buscar saber onde surgiu a terrível realidade do
mal. Certamente que o santo teólogo hiponense ouvira desde a terna infância de
sua mãe Mônica que um dos atributos de Deus era a bondade. Diante desse
ensinamento, o santo pastor se sentia perplexo quando se deparava com o mal,
tendo em vista que, durante vários anos de sua vida, ele próprio aderira ao
mistério da iniqüidade. Como se sabe, foi esta sua inquietação que o levou a
ingressar na seita dos maniqueus na tentativa de descobrir a origem do mal.
Donde nasce portanto, o mal, a infelicidade? Essas interrogações foram por
muito tempo angustiantes para o santo hiponense. Por fim chegou a essa
constatação: “Nenhuma natureza, absolutamente falando, é um mal. Esse nome não
se dá senão a privação do bem”.18 Foi a partir dessa descoberta que Santo
Agostinho verificou que o mal não tem uma essência ontológica. Ele veio à luz
em conseqüência da vontade que se apartou do bem. 17 Cf. De Lib. Arb. II, 18.
18 De Civ. Dei XI, 22. 61 “Deus, autor das naturezas, não dos vícios, criou o
homem reto; mas, depravando-se por sua própria vontade e justamente condenado,
gerou seres desordenados e condenados”.19 É nesta linha de raciocínio que o
exímio teólogo de Hipona distingue claramente a liberdade do livre-arbítrio. A
liberdade, no pensamento Agostiniano, não é escolha é mergulho no Bem. Só é
verdadeiramente livre quem se submete às leis de Deus. A verdade absoluta é
Deus, somente nele o homem vive em abundância e desfruta da liberdade.20 Santo
Agostinho sempre defendeu a liberdade humana. Segundo ele, a mesma é decorrente
da filiação divina. Quando o ser humano afasta-se de Deus, sua liberdade
torna-se libertinagem. Infelizmente, isso acontece freqüentemente trazendo
consigo graves problemas na vida pessoal e social. A liberdade para o pastor
hiponense só se realiza na medida em que o homem aceita o senhorio de Deus na
vida. É evidente que da vivência autêntica da liberdade depende a relação que
irá travar na sociedade com seus semelhantes. Quando vive sob a regência das
leis divinas redundará em benefício da coletividade, ou seja buscará com todas
as forças atingir o bem comum. Quando se entrega às paixões sacrifica a
liberdade acarretando mal estar na comunidade ameaçando a paz. Para o santo
pastor de Hipona é da liberdade, acompanhada pela graça que depende o bom
relacionamento entre os membros da sociedade. O livre-arbítrio é a
possibilidade de escolher. Para Santo Agostinho, ele é o responsável pela
perdição ou a desgraça de alguns. O fato é que muitos escolhem seus próprios
caminhos e esquecem ou desprezam o Criador. Com isso, comprometem sua
felicidade e a de seus semelhantes, pois a paz não é possível sem o auxílio
divino. Vejamos as palavras do Santo pastor que revelam essa realidade: “Por
isso, do mau emprego do livre-arbítrio originou-se verdadeira série de
desventuras, que de princípio viciado, como se corrompido na raiz o gênero
humano, arrastaria todos, em concatenação de misérias, ao abismo da morte
segunda, que não tem fim, se a graça de Deus não livrasse alguns”.21 Dessas
palavras, depreende-se que embora o livre-arbítrio tenha sido criado por Deus
ele é manipulado pelo ser humano. Muitas vezes, ele é transformado em
instrumento de condenação se não for iluminado e assistido pela graça de Deus.
Sem a 19 Ibid., p. 109. 20 Cf. De Lib. Arb. II, 14. 21 De Civ. Dei XIII, 14. 62
luz do alto, é impossível que o livre-arbítrio escolha a via do bem.22 Se o
homem não abraçar a reta ordem de Deus, que consiste em amá-lo sobre tudo, não
terá condições de escolher entre o bem e o mal. Com isso será escravo e não
livre. Santo Agostinho assegurou com bastante firmeza que, diferentemente da
doutrina dos pelagianos, a mensagem cristã trouxera um novo significado para a
liberdade. Cristo, quando se encarnou, tornou-se a própria graça que o homem
necessita para fazer o exercício de sua liberdade. Isso os pelagianos não
contavam, pois eliminaram a graça de Cristo do seu sistema de raciocínio. Para
eles, a vontade não entra em duelo com nada, ela é executante. Daí, não necessita
do auxílio divino. Já dentro da doutrina cristã se trava um terrível atrito
entre os graus de vontade, a graça e as paixões. A origem dessa desordem entrou
no mundo com o pecado original que veio a enfraquecer a vontade. O santo
hiponense fez sempre questão de declarar que a vontade humana não é onipotente;
ela carece no fundo da poderosa e eficaz força de Cristo para vencer as
propostas e insinuações do mal e optar pelo bem. Aqui neste ponto vem à tona o
papel desempenhado pelo amor. Quando ele está ancorado em Deus, conduz e
orienta o homem para o Sumo-Bem. Sobre isso, o santo pastor declarou: “Trata-se
de um apetite natural, pressuposto pela vontade livre, que deve, iluminada pela
luz natural da razão, orientá-lo finalmente para Deus, SumoBem.”23 3.2.2 A
Relação entre o individual-social No pensamento agostiniano, a vontade só
causará dano ao homem, desviando da felicidade, se ela não for conduzida pela
graça divina. De fato, existe para o santo pastor esta hipótese do ser humano
fecham-se à graça e tentar construir ou fazer suas opções sem Deus. Quando isso
se torna realidade, a felicidade está ameaçada. Aliás, Deus é a felicidade por
excelência. Quando se tente afastar-se dele já começa a desviar-se da
felicidade. Pois, Deus é quem dá discernimento e sabedoria aos homens para eles
amarem o que realmente deve ser amado. Na linguagem agostiniana, esta maneira
de proceder chama-se reta ordem do amor. Ela consiste em viver 22 Cf. De Lib.
Arb. II, 19 23 Ep: 140, 3. 4. 63 intensamente o preceito divino “Amar a Deus
sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. Essa norma evangélica dá
equilíbrio ao homem para viver sua individualidade sem prejudicar o seu
relacionamento social. Guiado pela graça o ser humano ama o Criador e a si
mesmo. Porém, em Deus ama todos os seus semelhantes. O bispo de Hipona afirma
que o livre-arbítrio ocupa um lugar fundamental na distinção e escolha entre as
coisas a serem amadas e as que devem apenas ser usadas.24 O livre-arbítrio,
neste contexto, é o princípio da moral interior, já que é dentro do homem que
sua capacidade de escolher é posta à prova. Todo dia é colocado diante de cada
ser humano um quadro de coisas ou objetos que em si são bons, contudo são
inferiores. Atraídos pelas aparências, alguns homens valorizam excessivamente
estes bens perecíveis e desprezam os superiores, dos quais Deus ocupa o
primeiro lugar. Infelizmente, isso ocorre com freqüência e disso Santo
Agostinho tinha consciência. Ele experimentará na pele o que isso significa:
“Quando a vontade, abandonando o superior, se converte às coisas inferiores,
torna-se má, não por ser mau o objeto, mas por ser má a própria conversão”.25
Na verdade, da adolescência à idade adulta, o bispo de Hipona mergulhará nas
coisas inferiores antepondo-as às superiores cujo ápice era o próprio Deus.
Somente depois de muitas desilusões e frustrações é que, assistido pela graça
foi libertado da inversão do amor. Baseado na sua vivência pessoal, Santo
Agostinho veio a concluir que o mal tem sua origem no amor desordenado. Aliás,
na Cidade de Deus, o pastor de Hipona menciona com freqüência que não se deve
buscar as causas do mal na beleza dos objetos, mas nas opções ruins que o homem
é capaz de fazer. Tudo depende da maneira como ele ama e do direcionamento que
se dá ao amor: “Assim, a avareza não é vício do ouro, mas do homem, que ama
desordenadamente o ouro, por ele abandonando a justiça, que deve ser
infinitamente preferida a esse metal. E a luxúria não é vício da beleza e graça
do corpo, mas da alma, que ama perversamente os prazeres corporais, desprezando
a temperança...”26 24 COSTA, Marcos Roberto Nunes. O Amor: Princípio da Moral
Interior em Santo Agostinho. Perspectiva Filosófica, V. 4, n. 9, p.117-121,
Jul./Dez. 1996. 25 Cf. De Civ. Dei XII, 6. 26 De Civ. Dei XII, 8. 64 O teólogo
hiponense classifica o amor em duas formas. Para ele, há o amor menor que é
aquele dirigido para os bens mutáveis como os alimentos, o vestuário, o ouro e
a prata. São bons em si mesmos, porque foram criados por Deus, mas têm um valor
relativo ou médio. O uso que se deve fazer deles nunca poderá tornar-se
abusivo. Esses bens precisam ser amados com discrição. Quando se fala em amor
maior significa colocar Deus na primeira ordem do amor, ou seja, amá-lo acima
de tudo e de todos. Viver de acordo com esse amor representa a submissão da
criatura para com seu Criador absoluto. Para o exímio teólogo, isso é usufruir
da liberdade no mais alto grau, aliás só é verdadeiramente livre na lógica
agostiniana quem se une ao SumoBem que é Deus, sendo-lhe submisso. 3.3 A Cidade
Celeste e a Terrestre 3.3.1 A Origem das Duas Cidades O Santo pastor de Hipona
misticamente divide a sociedade em dois grupos que ele classifica de Cidade de
Deus e Cidade Terrestre. Ambas tiveram origem distintas. Enquanto a Cidade
Celestial teve sua inspiração no amor do Sumo-Bem que é Deus, a Cidade
Terrestre fora edificada sobre o amor próprio, a soberba: “Dois amores
fundaram, pois, duas Cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a
Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial.
Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela busca a
glória dos homens e tem esta por máxima glória a Deus”...27 Nesta separação que
Santo Agostinho faz entre aqueles que se deixam conduzir pelo amor do Criador e
os que são movidos pelo amor de si mesmos está incutida a noção das categorias
metafísicas do bem e do mal.28 Trata-se na verdade, de duas atitudes que podem
ser tomadas pelas criaturas com relação em primeiro plano ao Criador. De fato,
da aceitação ou da recusa ao senhorio de Deus depende a sorte individual e
social dos homens. Qualquer opção que o ser humano faça pelo Sumo- 27 De Civ.
Dei XIV, 28. 28 Cf. COSTA, Marcos Roberto Nunes. A Dialética das Duas Cidades.
Veritas, v. 43, n. 4, p. 1053-1069, 1998. 65 Bem que é Deus ou pelo mal que é
seu orgulho acarretará sua felicidade eterna ou do contrário, sua infelicidade.
O santo doutor hiponense estabelece claramente que os homens foram criados para
viverem em comunhão com a verdade absoluta que é Deus, tal como os anjos
permanecem unidos ao Criador numa felicidade sem fio. Todo ser humano é chamado
para participar da comunhão do amor. Ao definir em que consiste o bem e o mal,
que para Santo Agostinho está condicionado à aceitação ou rejeição da proposta
de Deus, o santo teólogo insiste que não há nenhuma dicotomia entre o espírito
e a matéria. Pelo contrário, ele reconhece que ambos foram dados por Deus ao
homem. Portanto, podem viver em inter-relação sem prejuízo mútuo. Aliás, esse
desejo já existia desde o início da fundação do mundo. Não foi a matéria que
tornou o homem ruim, mas a sua vontade que se rebelou contra Deus. “O homem não
se tornou semelhante ao diabo por ter carne, de que o diabo carece, mas por
viver segundo si mesmo, quer dizer segundo o homem”.29 Quando o santo hiponense
usa a expressão carne, ele está se referindo não à matéria em si, mas à
tendência do homem de optar por si mesmo. Essa para o pastor de Hipona, é a
raiz de todos os males que repercutem na vida individual e social. Já, viver
segundo o espírito é permanecer em submissão a Deus, ou seja, fazer sua
vontade.30 Tendo em vista que não existe oposição concreta entre o espiritual e
o material, entre a Cidade dos anjos e a Cidade do homem, surge espontaneamente
uma interrogação. De onde surgiu, então, a Cidade Terrestre, símbolo daqueles
que pretendem viver sem Deus? A resposta é clara, ela originou-se do
livre-arbítrio do ser humano. De fato, pela sua escolha o homem trouxe à
existência a Cidade Terrestre que é composta por homens dominados pelo orgulho.
A filosofia deles se resume em viver no egoísmo. Não buscam o Criador e nem
seus semelhantes. Mergulham no século e nas suas vaidades e se esquecem do fim
para o qual foram colocados na terra. Deus deu a vida ao homem para ele
colaborar na construção da civilização do amor. É somente dentro desta
perspectiva que a vida humana encontra seu verdadeiro significado. A procura do
bem-comum constitui uma preocupação constante do cidadão da Cidade Celeste.
Peregrinando na penumbra do tempo, vive o aqui e o 29 De Civ. Dei XIV, 3. 30
Ibid., p. 135. 66 agora caminhando na esperança da glória futura.31 Essa meta
escatológica não exclui o interesse pelos assuntos de ordem social e política.
Ao pensar na eternidade, o homem de boa vontade se empenha em dar sua parcela
de contribuição para que este mundo seja melhor. O santo doutor enfatiza que a
felicidade humana tem seu início nesta vida, contudo só terá sua plenitude na
eternidade.32 A Cidade Celeste abriga no seu seio uma multidão de homens e
mulheres que vivem em sintonia profunda com Deus. Os anjos são os primeiros
membros desta Cidade, foram criados para dar glória ao Criador, como homem:
“Uma é a sociedade dos homens piedosos e a outra dos homens ímpios, cada qual
com os anjos de seu grêmio, nos quais precedem, ali o amor a Deus e aqui o amor
a si mesmo”. 33 Há quem diga que esta divisão que Santo Agostinho fez da
humanidade em dois grupos fora influenciada ainda pela sua passagem pelo
maniqueísmo. Ele conservara na sua mente uma visão dualista do homem, como ele
deixa transparecer na obra Cidade de Deus. Depois de sua conversão, contudo,
ele superou esta discrepância imaginária entre corpo e alma, pregada pela seita
dos maniqueus. O termo Cidade em Santo Agostinho não se limita apenas por
designar um determinado grupo de pessoas que vivem e se relacionam dentro de um
território geográfico. Quando o santo pastor de Hipona emprega este termo, ele
se refere ao Estado e até mesmo a um Império. Como já se viu ao longo deste
trabalho quando o hiponense escreveu a Cidade de Deus, ele tinha diante de si a
história da humanidade, desde as origens mais especificamente, a travessia do
Império Romano, seu surgimento, crescimento, apogeu e derrocada.34 O teólogo
hiponense, apoiado na Sagrada Escritura, descreve a partir do livro do Gênesis,
a origem comum das duas Cidades ou sociedades que peregrinam no tempo. Adão foi
o pai de ambas. A divisão fora ocasionada pelos próprios filhos Abel e Caim.
Este último se rebelou contra seu irmão tirando-lhe a vida por inveja. A partir
deste seu ato fratricida, nasceu a Cidade terrena composta por homens e
mulheres dominados pelo amor próprio e pelas paixões desordenadas. Os cidadãos
da Cidade 31 Cf. De Civ. Dei XVII, 20. 32 Ibid. , p. 309. 33 De Civ. Dei XIV,
13. 34 Cf. Ibid., p. 107 et. Seg. 67 Terrestre buscam suas forças e inspirações
apenas na natureza, que em si não tem consistência, pois foi ferida pelo
pecado. Os membros da Cidade Celeste confiam e agem impulsionados pela graça de
Deus. Sobre este aspecto, Santo Agostinho lança as bases da esperança cristã.
Roma e o Império Romano ruíram porque estavam edificados sobre a soberba. De
fato, foi a causa de todos os vícios e desatinos dos romanos. Eles se gabavam
de suas próprias façanhas e prestavam culto aos deuses para se justificarem de
suas atrocidades morais e sociais. Pois dentro do Império Romano como já se viu
anteriormente eram cometidas diversas injustiças muitas vezes camufladas de
justiça. Isso o próprio Santo Agostinho denuncia em vários trechos da obra
Cidade de Deus. 35 O santo bispo de Hipona verificará que no Império Romano não
predominava muito antes de sua destruição o interesse pelo bem comum e nem
muito menos pela prática da justiça. Já não reinava a tão necessária concórdia,
pois os membros da sociedade a começar pelos governantes tinham investido a
reta ordem do amor. Aliás, Santo Agostinho afirma que a justiça consiste em
primeiro lugar em dar a Deus, o Criador, o espaço que ele merece como Ser
absoluto. Esse princípio não era levado a sério pelos povos romanos. Os
governantes estavam mais interessados apenas em si mesmos e nos seus interesses
pessoais. Deram largas ao mundo das paixões que já haviam dominado de tal modo
seus pensamentos. Nota-se que foi nestas circunstâncias que Roma caíra sobre o
peso de seus numerosos atos corruptos que lhe acarretaram sua auto-destruição.
Na visão agostiniana, os membros do Império Romano, na sua maioria, sobretudo
entre os que detinham algum tipo de poder, se tornaram partidários da Cidade
Terrestre. Adotaram os mesmos princípios da vida daqueles que se revoltaram
contra a verdade suprema que é Deus. Com isso, passaram a viver exclusivamente
mergulhados no individualismo dominados pela avareza, cobiça e idolatria. Tanto
assim que o império e a Cidade de Roma eram para o teólogo hiponense símbolo ou
continuação da Babilônia. Segundo Santo Agostinho, esta Cidade era o reduto de
todos aqueles e aquelas que só vivem segundo a carne. A vida no Espírito
representa os homens e as mulheres que pautam suas atitudes de acordo com a
vontade de Deus. Permanecem unidos ao seu Senhor em todas as circunstâncias sem
afastarem-se de seu amor infinito. Santo Agostinho chama de Jerusalém do alto a
Cidade à qual fazem parte estes cidadãos.36 Um dia participarão em plenitude
dela, contemplarão, experimentarão a felicidade verdadeira. 35 De Civ. Dei.
XIX, 5. 36 Cf. HAMMAN, A - G. op. Cit. P. 307. 68 É desejo de Deus consolidar e
marcar com seu Espírito os projetos e realizações de seus filhos. Contudo, não
força e nem coíbe suas criaturas a abrirem seus corações para Ele. Deus propõe
seu amor, sua amizade e companhia, mas não obriga ninguém a segui-lo e nem a
obedecer seus preceitos. Em meio à desolação e nostalgia em que muitos homens e
até cristãos se encontravam pela ruína do Império Romano, a Cidade de Deus se
transformou num livro de Esperança. Na verdade, o santo teólogo tenta mostrar
na sua obra que aqueles que confiam em Deus não se desesperam pois ele é
segurança e paz. Assim como Roma e o Império Romano findaram, estes que eram
tesouros preciosos mas perecíveis, os outros bens mutáveis também passaram.
Somente os valores que sustentam a Cidade Celeste permanecerão, pois Cristo que
é o Senhor traz consigo a esperança de um reino que não terá fim. É dentro
deste contexto que se pode afirmar: “Tal origem tal declínio”. Como se
constatou ao longo deste capítulo, a Cidade Terrena, da qual o Império Romano é
representante, fora construída sobre a areia ou o barro de sua própria inépcia.
Não tinha condições de subsistir. Estava destinada, desde o início, para o
fracasso. Desprezaram aquele que verdadeiramente podia lhe dar sustentação. No
pensamento agostiniano, tudo que nasce na terra sem o Sumo-Bem como alicerce
que ele não hesita em chamar de Deus, está condenado à destruição. Para o santo
pastor, o homem não pode construir sua existência sem o amor dei37, pois deste
modo colocará em risco seu desejo de paz e felicidade. Para Agostinho, o
caminho da verdadeira concórdia individual e social passa necessariamente pela
experiência do amor, da doação. Isso só se torna possível quando se vive em
comunhão profunda com Deus. O contrário desta proposta é o amor sui que repele
o Sumo-Bem e tenta fixar suas bases em si mesmo, e que acaba menosprezando os
demais. Quando se detém a comentar a fundação e o desenvolvimento da Cidade
Terrestre, Santo Agostinho mostra o quanto no seio dela existem guerras e
discordâncias. Na verdade, não pode haver entendimento e comunhão onde Deus não
é o centro. Como sendo o amor por excelência, Ele alimenta e dá vida àqueles
que lhe são submissos. Com isso, as pessoas e as instituições se amam e se
ajudam mutuamente superando suas diferenças em prol de um objetivo comum que é
a paz. Quando Deus não encontra abertura e predomina o amor a si mesmo, então
se perpetua uma série de lutas e guerras. O teólogo hiponense, como se sabe,
quando se 37 Cf. NEDEL, José. O Homem e a História em a Cidade de Deus. Cultura
e Fé, v. 74, p. 34-35, Jul. / Set. 1996. 69 debruça sobre o desenrolar da
Cidade Terrestre coloca como exemplo não só Abel e Caim. Ele cita também o caso
dos irmãos Rômulo e Remo que lutaram entre si até que um assassinou o outro
movido pelos sentimentos de inveja e ciúme.38 Com estes testemunhos da história
ocorridos para mostrar a própria divisão que existe entre os membros da Cidade
Terrestre, Santo Agostinho quis salientar mais uma vez a impossibilidade de
existir paz duradoura entre os cidadãos da polis que vivem como se Deus não
existisse. 39 Não é difícil encontrar em toda a história da humanidade os
vestígios dessas Cidades. Eles perpassaram os séculos. Não se pode deixar de
reconhecer no desfecho destas duas Cidades a caminhada pessoal e comunitária de
todos os povos. Tudo depende da direção que se dá ao amor. O amor de Deus
conduz os seres humanos para a felicidade temporal que é a paz e a concórdia.
Elas são adquiridas pelo interesse em se buscar o Bem Comum. A paz definitiva
que só terá sua plenitude na Jerusalém celeste depende da abertura a Deus e do
empenho com que os homens se dedicam a antecipar aqui na terra a proposta do
reino de Deus. Aliás, segundo a doutrina do santo teólogo de Hipona, o papel da
Cidade Celeste é conquistar os homens para fazerem parte do seu grêmio, ou
seja, atrair todos para serem promotores da paz.40 O homem, para Santo Agostinho,
vive unido a polis. Da opção que ele faz pelo “amor Dei” está ligado o
progresso material e espiritual da Cidade. Na filosofia Agostiniana, não existe
a hipótese de se pensar no homem sem inseri-lo num contexto social.41 A Cidade
Celeste quando procura gerar filhos para si, ela o faz na esperança de levá-los
a desfrutar da paz verdadeira, enquanto peregrinam neste mundo e um dia
alcançarem a vida eterna. Não se deve esquecer que o maior mal para o pastor de
Hipona é a morte eterna. Para ela, se encaminham todos os cidadãos da Cidade
Terrestre que se afastaram do verdadeiro Deus que podia livrá-los dela. Mas
eles preferiram os bens mutáveis provisórios desprezando os tesouros imutáveis.
Poderiam usar as riquezas desta terra sem menosprezar o Criador e seus
semelhantes. Contudo, persistiram em adorar as criaturas ao invés do autor e
consumador delas. Daí escolheram sua própria ruína, vivem neste mundo como se
ele fosse eterno. A glória do soberano Deus não lhes interessa só se preocupam
em gozar e se divertir até as últimas conseqüências. O futuro não é objeto de
suas solicitudes. 38 Cf. De Civ. Dei XV, 5. 39 Ibid., p. 411. 40 Ibid., p. 409.
41 Ibid., p. 93. 70 “Os príncipes daquela Cidade comiam de madrugada, ou seja,
antes da hora devida, porque não esperavam a felicidade real no século futuro,
a verdadeira, desejando ser felizes quanto antes com a felicidade do mundo”.42
3.3.2 Fins das Duas Cidades Conforme se notou no tópico anterior, desde o seu
surgimento a Cidade de Deus e a terrena se distinguem pelo amor sobre o qual
ambas foram edificadas. A Cidade de Deus é movida pelo amor do seu Criador que
a conduz para a prática do bem. Nela seus membros procuram viver não para si,
mas se desdobram pelo bem comum. Já os cidadãos da Cidade terrena são demasiadamente
centrados no amor próprio que os distanciam de Deus e dos interesses da
coletividade. Se o amor que as conduz é diverso, resulta naturalmente que as
duas possuem fins diferentes, enquanto a Cidade de Deus anseia pela paz
definitiva com Deus para sempre na eternidade. A Cidade terrena almeja e
trabalha apenas por uma paz temporal transitória que se esgota aqui mesmo nesta
terra.43 O santo pastor de Hipona deixa claro, no decorrer da Cidade de Deus, a
idéia de que o Bem por excelência que o homem deve possuir é Deus. Andar com
Ele durante a vida sobre a terra já é um prenúncio da plenitude sem fim. Essa é
a realização máxima do ser humano. O doutor hiponense chama de vida eterna a
concretização dessa verdade. Contudo, afastar-se de Deus é desviar-se da felicidade
no aqui e agora começando a morrer. De fato, para o doutor da graça, a fonte da
vida é Deus.44 Deste raciocínio do santo pastor, se percebe que sua doutrina é
profundamente marcada pelo caracter transcendente da vida. No pensamento
agostiniano, tudo que o homem de bem faz está voltado para a eternidade. Ele
acredita piamente que o ser humano por ser imagem e semelhança de Deus possui
uma centelha divina. Daí tudo que ele faz está estreitamente vinculado à
eternidade. Não se trata de menosprezar a vida e nem as atividades terrenas.
Pelo contrário, trata-se de valorizá-las dando-lhes pleno significado. Na
doutrina agostiniana, o homem deve agir tendo diante de si seu fim último que é
abraçar a Deus, ou seja, felicidade sem 42 De Civ. Dei XVII, 20. 43 Cf. De Civ.
Dei XIX, 14. 44 Ibid., p. 110. 71 fim. Se o homem vive em sociedade e não
esquece sua meta definitiva, contribui para o aperfeiçoamento da comunidade de
modo intenso.45 As considerações provindas do pensamento da vida eterna dá
consistência aos ideais de construção de um Estado justo. É bem o contrário do
que alguns afirmam dizendo que a vida de adesão a Deus e os princípios cristãos
alienariam o ser humano de suas responsabilidades sociais. Ao longo da história
quantas vezes constatou-se que a busca de Deus, e por conseguinte, o encontro
do homem com Ele fez desabrochar uma vontade de renovar o triste quadro das
injustiças sociais, das guerras e violações dos direitos dos povos. As duas
cidades vivem no tempo, no mundo, porém marcham para fins diferentes. A Cidade
Terrestre terá sua conclusão aqui mesmo na terra, pois depositou suas
expectativas e esperanças nos bens mutáveis. Já a Cidade Celeste tem em si o
germe da vida eterna. Seus cidadãos nascem, crescem e se multiplicam no mundo
terreno mas olham para a eternidade. Usam dos bens materiais e das demais
criaturas transitórias, mas não se apegam a elas desprezando o Criador. Pode-se
dizer que a Cidade Celeste ultrapassa o limiar do tempo, enquanto a terrestre
ou dos ímpios termina aqui mesmo, dentro da temporaneidade da matéria. Enquanto
a primeira é pautada pelos valores eternos, a segunda nasceu e dá seus passos
movida por ideais e propósitos puramente terrenos.46 Vejamos o que o próprio
Santo Agostinho fala sobre os fins das cidades: “Na paz final, entretanto, que
deve ser a meta da justiça que tratamos de adquirir aqui na terra, como a
natureza estará dotada de imortalidade, de incorrupção, carecerá de vícios e
não sentiremos nenhuma resistência interior ou exterior, não será necessário a
razão mandar nas paixões, pois não existirão. Deus imperará sobre o homem e a
alma sobre o corpo. E haverá tanto encanto e felicidade na obediência quanto
bem-aventurança na vida e na glória. Tal estado será eterno e estaremos certos
de sua eternidade. Por isso, na paz dessa felicidade e na felicidade dessa paz
consistirá o soberano bem”.47 O santo pastor de Hipona diz que estas duas
cidades peregrinam sobre a terra. Elas andam misturadas pelos corpos. Vivem as
mesmas vicissitudes, porém estão separados pelas vontades. Como já se viu em
outra circunstância, a Cidade Celeste procura identificar-se com a vontade do
Criador que é o amor que revitaliza e constrói. Já a Cidade Terrestre suplanta
a vontade de Deus para fazer reinar seu 45 HAMMAN, A - G. op. Cit. P. 303. 46
Cf. De Civ. Dei. XV, 17. 47 Ibid., p. 422. 72 próprio egoísmo. A grandeza do
seu individualismo é tão exacerbada que ela se julga portadora de todas as
virtudes. Marcada pelo espírito de auto-suficiência, os membros da Cidade
terrena vivem apenas para dar glória a si mesmos. Desse modo, a tão almejada
paz, anseio de todos os cidadãos, torna-se impraticável. Para se obter a paz é
fundamental que haja o domínio das paixões e isso não é conseguido sem o
auxílio divino. Nisto, o santo doutor enfatiza bastante a necessidade do homem
obedecer ao Criador: “Por isso, enquanto não dominarmos as paixões, não há
perfeita paz, porque os que resistem se debatem em perigosa peleja e os
vencidos ainda não têm assegurada a vitória, mas requerem vigilante opressão. Nestas
tentações, das quais a Escritura resumidamente diz: ‘Não é, porventura,
contínua tentação a vida do homem sobre a terra.’”48 Santo Agostinho, no seu
realismo, não esconde que haverá justa provação para aqueles que se vangloriam
de si e menosprezam a Deus. Cultuar o verdadeiro Deus para o doutor hiponense é
algo indispensável para que a Cidade Terrestre possa suplantar o pecado das
depravações morais, pois do contrário não será possíveis harmonia interior e
exterior dos membros da sociedade. Desse modo, não se terá a reta ordem das
coisas. “Por mais louvável que pareça o império da alma sobre o corpo e da
razão sobre as paixões, se a alma e a razão não rendem a Deus a homenagem de
servidão que Ele manda, tal império não é verdadeiro e justo.”49 Não somente
isto, mas tal estado não atingirá a paz aqui enquanto se desenvolve e nem na
outra vida junto da felicidade sem fim que é Deus, Senhor absoluto do universo.
Para Santo Agostinho, a profunda frustração dos homens que aderiram à Cidade
Terrestre é a ausência da experiência do amor autêntico. Dessa carência decorre
a tristeza, pois no princípio o homem foi criado para o amor, ou seja, sendo
amado reveste-se de sua dignidade de Filho de Deus. Pelo contrário, quando não
ama, perdese no vazio de sua própria insignificância. A desilusão acontece
porque todos são chamados para viver com Deus eternamente, mas alguns trocam o
imutável pelo 48 Ibid., p. 421 49 De Civ, Dei XIX, 25. 73 mutável ocasionando a
perda da paz temporal, quando os cidadãos da Cidade Celeste já participam de
certo modo dos benefícios da paz definitiva. No pensamento agostiniano, as duas
cidades vivem mescladas e entrelaçadas no tempo. De fato, os homens atuam na
história. É nela que podem e devem construir seus projetos terrenos. Contudo os
cidadãos que se deixarem conduzir pelos preceitos divinos têm consciência de
que estão marchando para a pátria eterna. Diferentemente dos membros da Cidade
Terrestre que só pensam no aqui e no agora do tempo, os peregrinos da Cidade
Celeste trabalham neste mundo com os olhos fixos no festim da eternidade.
Apesar das críticas que o santo teólogo faz ao Império Romano, ele não é contra
as instituições cívicas e políticas. O que ele denuncia e critica com firmeza
são os desvios que o mesmo praticará ao longo dos séculos. Santo Agostinho
reconhece o valor, a importância das atividades terrenas do Estado. Em si o
poder público é bom foi criado com ótimas intenções. Pode muito bem
salvaguardar a paz e a concórdia. Aliás, o bem comum da sociedade deve ser uma
preocupação constante dos governantes. O problema é quando a sociedade, a
começar pelos que exercem cargos públicos, se subtrai do poder de Deus. Gera-se
uma total desordem no convívio social que a vida torna-se insuportável. O homem
da Cidade Terrestre volta-se contra o Criador e doador de toda autoridade
esquecendo-se da verdade apregoada por S. Paulo, e que Santo Agostinho
confirma: “Não há autoridade que não provenha de Deus”. Dessas palavras,
depreende-se que somente quando está unido a Deus é que o homem aprende
realmente a governar. A autoridade só encontra plena consistência quando vive
alimentada da fonte que em primeiro plano é Deus. Sem Ele, a autoridade
transforma-se em autoritarismo. O cidadão da Cidade Celeste busca neste mundo a
salvação. Para isso, procura incessantemente cumprir todos os seus deveres
sociais. Somente quando estes se tornam contrários a sua fé e a consciência, é
que deve resistir ao cumprimento desses deveres. O pastor de Hipona é de um
realismo impressionante. De fato, ele sabe que enquanto peregrinam neste mundo
os cidadãos de ambas as cidades não podem apartar seus corpos. Permanecem
unidos pelas obrigações e adversidades da vida, sujeitos aos mesmos males e
necessidades do tempo presente.50 Porém, interiormente, pelo desejo, pensam e
agem de maneira diversa com relação ao uso dos próprios bens 50 Cf. CHEVALIER,
J. História del Pensamiento 9, p. 355. 74 materiais e na conservação da
concórdia e da paz. Os cidadãos da Cidade Terrestre usam dos tesouros deste
mundo como fim absoluto de tudo. Já os cidadãos da Cidade Celeste lidam com os
bens terrenos como meios e não fim em si. A paz para a qual todos tendem, quer
sejam membros da Cidade Terrestre ou Celeste, pode ser experimentada por ambos.
Contudo, os membros da Cidade Celeste sabem que a paz da alma, que é a mais
importante, só será vivenciada por eles, pois ela é fruto do domínio das
paixões. Os membros da Cidade Terrestre gozarão apenas e quando muito da paz
terrena imperfeita. Isso, Santo Agostinho deixa transparecer na Cidade de Deus:
“O uso dos bens necessários a esta vida mortal é, portanto, comum a ambos os
casos, mas no uso cada qual tem fim próprio e modo de pensar muito diverso do
outro. Assim, a Cidade terrena, que não vive da fé, apetece também a paz
terrena; porém, firma a concórdia entre os cidadãos que mandam e os que
obedecem, para haver, quanto aos interesses da vida mortal, certo concerto das
vontades humanas. Mas a Cidade Celeste, ou melhor, a parte que peregrina neste
vale e vive da fé, usa dessa paz por necessidade, até passar a mortalidade, que
precisa de tal paz.”51 Dessas palavras, se entende que entre os membros das
cidades celeste e terrestre têm muitas coisas em comum. Possuem corpos e
necessidades iguais. Mas, enquanto os primeiros trabalham e sofrem, pensam no
futuro feliz que os aguarda. Já os últimos atuam no mundo como se ele fosse
permanente. Daqui decorrem todas as suas desilusões e frustrações. Ao descrever
os caracteres da Cidade Terrestre, o pastor hiponense deixa entrever que ele a
identifica com a história de todas as civilizações que tiveram sua origem em si
mesmas. Como já foi visto anteriormente, o teólogo de Hipona cita alguns
exemplos dessas construções que foram edificadas sem o fundamento divino.
Dentre estes, ele aponta a fundação e o desenvolvimento do Império Romano.
Contudo, o hiponense não se limita apenas a estas duas realidades amplamente
comentadas pelos historiadores.52 Ao longo do relato agostiniano sobre a Cidade
Terrestre, encontra-se uma referência clara concernente a todos os impérios
antigos. Aliás, uma teologia da própria história. Nela está embutida uma
crítica e uma explicação de todas as desventuras da humanidade. É sempre a
teimosia de um povo em querer construir a 51 De Civ. Dei XIX,17. 52 CARVALHO,
J. Vaz. Dependerá Santo Agostinho de Paulo Arósio? –Revista Portuguesa de
Filosofia, v. 1, no 2, p. 142-153, Abr./Jun. 1955. 75 sua felicidade e
progresso sem Deus. É neste contexto que a auto-suficiência, que no pensamento
de Santo Agostinho chama-se soberba, predomina ao invés da humildade. O
simbolismo das duas cidades tem como base a longa travessia do povo de Deus.
Nela o santo doutor contemplou as diversas etapas e fases da história humana. O
povo hebreu que foi fiel à crença do único Deus representa a Cidade Celeste,
cujos membros se esforçam por viver sob a lei divina, apesar dos perigos e até
mesmo das quedas e desvios durante a caminhada. O elemento que distinguia o
povo eleito no meio dos outros povos que o circundava era a adoração ao único
Deus, enquanto os povos vizinhos prestavam cultos a vários deuses. A
personificação desta realidade era o Império Romano, cuja sede era a Cidade de
Roma. Nela existiam diversos templos dedicados a diferentes divindades. Embora,
como se sabe, trata-se de uma leitura alegórica da realidade, a obra Cidade de
Deus apresenta uma censura a todo projeto humano que não se abre ao
transcendente. Ao traçar o quadro do mundo antigo, Santo Agostinho levanta o
problema político dos Impérios Romano e Assírio-babilônico. Ambos são símbolos
de sociedades fracassadas que mesmo obtendo no início um aparente progresso
social terminaram por naufragar, pois tinham seus alicerces sobre a areia do
orgulho humano. A tirania e a injustiça passaram a ser praticadas nestes
impérios. A razão que ocasionou tudo isso foi a falta de submissão dos
imperadores e de seus súditos ao Deus verdadeiro. Como já se viu no tópico
anterior, a natureza humana por si só é incapaz de viver e atuar em prol do
outro, enquanto não mergulhar no Bem Absoluto. Regidos por princípios geradores
e condutores diferentes, as duas cidades vivem uma ao lado da outra, contudo
são duas realidades distintas. Aqui reside o contraste, pois na Cidade de Deus
reina a perfeição do amor. Isso deve-se ao fato de que os seus cidadãos se
alimentam e rejuvenescem pelo amor de Deus. É nela que todos purificam suas
vontades egoístas e rebeldes. Só no amor por excelência se aprende a arte de
amar de verdade.53 A deformidade deixada pelo pecado original imprimiu seqüelas
na humanidade. Desde então, segundo o exímio pastor de Hipona a prática do amor
perfeito tornou-se impraticável. Para Santo Agostinho, somente os membros da
Cidade Celeste amam com perfeição. É desse amor e movidos por ele que tentam
permear a Cidade Terrestre para inverter o quadro triste das sombras impostas
pelas 53 Cf. De Trin., VIII, 12. 76 injustiças sociais.54 Eles provocam
insatisfações e até mesmo revoltas e guerras tornando-se fortes impecilhos para
a concretização da almejada paz. O pastor de Hipona afirma que a perfeita ordem
social só será possível quando os membros da cidade terrena, em primeiro lugar
os que governam, se abrirem para a prática dos preceitos de Deus, única
garantia de paz. A paz que no pensamento agostiniano é a tranqüilidade da
ordem, só será alcançada aqui na terra como meio relativo que antecipa a paz
definitiva da Cidade Celeste. Esse é, para o exímio teólogo, o fim para o qual
tendem todos os homens.55 Santo Agostinho defende tenazmente que a ordem
natural que Deus impôs aos homens é a paz. Ela é o bem comum que os governantes
devem buscar e promover. Contudo, o santo pastor não é inocente; ele tem
consciência que o homem não pode alcançar este bem para si e seus súditos se
não render culto ao Deus verdadeiro. A paz, no pensamento agostiniano, tem
certos pressupostos para ser obtida. Nunca haverá paz numa sociedade que
pratica a injustiça, onde é negado aos cidadãos seus direitos básicos. Entre
estes se encontram o acesso aos meios de subsistência como alimentação, saúde e
escola. Quando isso não ocorre ou o acesso torna-se difícil, a paz aos poucos
vai se diluindo. Se a autoridade constituída não pratica a justiça, que
consiste em primeiro lugar em prestar o culto devido ao Criador, então não pode
garantir a paz dos cidadãos. É interessante notar que na doutrina agostiniana a
mudança parte do plano superior. Isso quer dizer que as autoridades, ou sejam
aqueles que governam, devem dar o exemplo: “Porque ninguém possui mal a
justiça, e quem não ama não a possui;... porém, só se possui de direito o que
se possui justamente, e só é justo o que é bom...” “É-se, portanto, bom na
medida em que se age bem, isto é, se faz o bem, segundo a verdade, a caridade e
a piedade”.56 Nesta carta, estão traçadas de modo nítido as virtudes que devem
praticar os que têm o dever de salvaguardar a concórdia e a tranqüilidade da
sociedade. Mas neste ponto o santo doutor volta a insistir que sem o auxílio da
graça é impossível que o governante viva na justiça.57 Sem Deus todos os que
foram chamados a exercer o governo correrão o risco de caírem nos vícios. Santo
Agostinho tinha plena ciência dessa triste realidade. Aliás, ele estava certo
que a raiz das infelicidades individuais e 54 SANTOS, João Marcos Leitão.
Agostinho e a Hermenêutica da História, perspectiva filosófica, v. 4, no 8, p.
153-173, Jan./Jun. 1996. 55 Cf. De Civ. Dei XIX, 12. 56 Ep. I53, n. 26. 12. 13.
57 Cf. RAMOS, F. M. T., op. Cit. P. 144. 77 sociais dos homens estava sempre
associada à falta ou à recusa do amor de Deus por parte dos governantes e de
seus governados. O caos da sociedade é devido, no pensamento agostiniano, ao
afastamento da criatura do seu Criador, como ele afirma na sua explicação sobre
a fundação das duas cidades. O amor de si mesmo gera o egocentrismo que
repercute na vida social. Nela, cada um busca seus próprios interesses
esquecendo-se das necessidades do outro. O governante que não aceita o amor de
Deus torna-se um oportunista, servindo-se da sua posição apenas para satisfazer
seus desejos individualistas. Ao invés de promover o bem comum se limita apenas
em adquirir vantagens para si e alguns poucos privilegiados. É segundo esta
linha de raciocínio que Santo Agostinho define o homem que vive segundo a
carne. Aliás, é nesta perspectiva que na doutrina agostiniana estão bem
presentes as duas alternativas: viver segundo a carne ou viver segundo o
espírito. 58 A história sempre caminhou entre essas tensões. A atividade
política é exercida por homens que experimentam em si essa luta constante. Para
o santo hiponense, o político que vive segundo a carne não tem nenhuma chance
de praticar a justiça. É impossível que alguém, sem os ditames da lei eterna
consiga desvencilhar-se do seu próprio egoísmo. Já o político que vive segundo
o espírito é aquele que procura servir, ajudar seus semelhantes a viver com
dignidade. Isso, para o exímio teólogo, é possível, basta que a vontade se abra
para Deus, abraçando seu amor.59 A base para uma sociedade justa está
fundamentada na verdadeira “caritas” que comporta a prática do amor a si mesmo
e ao próximo tendo como força motriz o amor divino. No pensamento agostiniano,
é somente esse amor que é capaz de renovar o homem e a criação inteira. Só
vivendo dele e para ele é que se consolidará uma sociedade realmente justa.
Ainda que durante a peregrinação terrena, ela não seja definitiva, pode-se
colher no convívio social seus frutos de justiça, solidariedade, fraternidade e
paz. O cristão e ainda mais o governante que pratica essas virtudes é uma
bênção para a sociedade. E nesta circunstância faz-se necessário citar as
palavras do santo pastor que relatam a vida e as qualidades do seguidor de
Cristo autêntico: “Este homem, enquanto vive, sabe fazer da convivência uma
demonstração de sua generosidade; a presença dos inimigos é a oportunidade para
exercitar sua paciência; os outros dão-lhe motivo para praticar o bem; a todos
abraça com sua benevolência. E embora não ame as coisas temporais, sabe usá-las
e procura ser 58 ABBAGNANO, N. , História da Filosofia, p. 135. 59 De Civ, Dei
XI, 28. 78 generoso para alguns homens, se não pode favorecer a todos. Por isso
se demonstra predileção a alguns de seus familiares, não é por amá-lo mais,
senão porque tem maior confiança e maiores oportunidades. E como não pode
resolver os problemas de todos os homens que ama igualmente, faltaria aos
deveres da justiça se não atendesse com preferência aqueles que estão mais
unidos a ele. A união espiritual é mais forte que aquela que nasce dos tempos e
lugares, enquanto vivemos no mundo; mas a união da caridade excede a todos.
Portanto, ele ele não se abate com a morte de alguém, porque quem ama a Deus
sabe que não perece para ele quem não perece para Deus. Não fica infeliz com a
miséria alheia, como não é justo com a justiça dos demais, e não podendo
ninguém roubar-lhe nem sua virtude nem seu Deus, nunca lhe falta a felicidade.
E, se por acaso o perigo o impressiona, ele vai socorrer ou corrigir, sem
perder a paz.”60 A proposta que Santo Agostinho apresenta acerca da justa ordem
social não é utópica. Ela encontrou ressonância ao longo de todos os séculos.
Contudo o exímio teólogo não esconde que ela comporta a submissão da criatura
ao Criador. Como outrora para os pagãos esse ensinamento pareceu absurdo e fora
da realidade, hoje a sociedade hodierna mergulhada no consumismo desenfreado e
no materialismo, se assusta diante desse ideal apregoado pelo doutor hiponense.
Contudo, mais do que nunca ele se faz urgente. Vive-se num tempo em que o amor
foi reduzido apenas numa palavra, ou seja, não tem nenhuma ressonância na vida
prática. É preciso resgatar o seu sentido, e para isso Deus é fundamental, sem
Ele governantes e governados nunca amarão de verdade.
Irmão messias