A historiografia e o tempo na Mesopotâmia
Embora, a civilização mesopotâmica possua traços comuns a
relação entre a historiografia e o tempo deverá ser observada, primeiramente,
no legado sumério, e em seguida na tradição dos povos semitas. Não
esquecendo, porém, que elas são interdependentes, mas que a matriz suméria
atravessa os tempos e as escritas. É claro, que a noção de história e de
historiografia era bem diferente da nossa. Na Suméria, a composição
escrita deixou muitas referências históricas diretas, mas poucas peças
literárias a que possamos designar de historiográficas. Os dois
géneros mais conhecidos são, talvez, as crónicas, um género de texto histórico
que regista uma série de acontecimentos classificados em geral pelos anos do
reinado dos soberanos. E as inscrições reais, que eram textos com um carácter
monumental redigidos por monarcas desejosos de assegurar a sua fama, e de
afirmar a sua piedade ou de imortalizar a memória dos seus actos principais,
tal como a construção de raiz ou a reconstrução de um templo ou de um palácio,
ou para celebrar os acontecimentos gloriosos do seu reinado. Este foi um género
literário bastante característico da Mesopotâmia antiga. As mais velhas
inscrições reais remontam à época suméria arcaica e inauguraram uma tradição
que não se deteve até à época selêucida.
As inscrições
sumérias preocupavam-se em documentar o tempo presente visando o seu futuro
conhecimento. Algumas delas viam de forma retrospectiva as circunstâncias e os
factos passados, revelando um sentido do pormenor histórico pouco comum nesses
tempos recuados. Catalogavam e sistematizavam, pretendendo criar ordem e
inteligibilidade no caos natural. Ordenavam os períodos históricos do passado,
estando as inscrições ao nível da documentação arquivística, ou seja, do
simples encadeamento de dados particulares não contextualizados num todo.
Salientamos
quatro textos produzidos pela historiografia suméria, o primeiro deles, é um
documento proveniente de Lagash, dos arquivos de Entemena, datado de cerca
de 2430 a.C., conhecido como a Inscrição de Entemena e que nos
relata a disputa entre as cidades de Umma e de Lagash a propósito da fronteira
comum. Toda a narrativa tem lugar durante duas gerações – a de Eanatum e a de
seu sobrinho Entemena. O narrador não enumera apenas com exactidão os factos
ocorridos na sua época. Ele foi às origens, e remotou à época de Mesilim, rei
de Kish, trocando, assim, a arquivística pela história, e, desse modo,
contextualizando os acontecimentos.
O segundo
documento, trata da descrição da libertação da Suméria por Utuhegal, 2116-2110
a.C. que se encontra num texto conhecido por A Guerra dos Seis Dias, a
ação desenrola-se numa série de quadros, expostos ao longo das tabuinhas, e
que consistem em múltiplas situações, como uma inflamada oração do herói e da
cidade de Uruk a lanana, ou a ida para a guerra sob a proteção divina. No texto
está patente a convicção de que os homens executam uma missão divina; o que,
todavia, dão dispensa elementos da acção humana, a saber: – a preparação
psicológica da população, o alistamento dos combatentes, as trocas de missivas,
a perseguição e captura do inimigo. Estamos, pois, perante uma sucessão de
tempos: os tempos maus e os tempos bons. Esta é uma imagem claramente ligada à
ideia suméria de história.
Os tempos maus
eram a consequência de um pecado cometido por Naram-Sin, que saqueara a cidade
santa de Nippur, e que, consequentemente, ofendera Enlil com o sacrilégio. Em
consequência, o deus envia os Gútios contra Akkad. Trata-se de um interessante
texto historiográfico, onde se salienta um estilo vivo em que se utiliza uma
sequência de quadros cujo ritmo vai avançando após o quarto dia, antecipando a
narrativa da fuga precipitada de Tirigan, o rei dos Gútios que terminaria morto
às mãos daqueles a quem ele oprimira. Para alguns autores este «é claramente um
modelo de história teocrática, em
que se reserva aos deuses o papel decisivo na determinação e condução dos
eventos». O terceiro texto trata da queda do império de Akkad às mãos dos
Gútios, e designa-se A Maldição de Agade. De facto, no texto,
confluem diversas tradições e diversas interpretações do facto histórico. É
patente em toda a composição a tendência de inserir num fundo religioso a
tradição da queda de Akkad. Não porque existisse qualquer pretensão do rei de
Akkad de dominar a dinastia neo-suméria de Ur. O que estava subjacente era a
tradição de uma época de felicidade ainda não muito longínqua centrada ao norte
e, em contraposição, a dúvida sobre a legitimidade das relações de força da
época em que se vivia.
O texto A
Maldição de Agade, combinou as tradições acerca da invasão dos Gútios, a
ruína de Akkad, a existência de um soberano rival de Naram-Sin, em Nippur, uma
crise económica desta cidade nos fins do Império Acádico, e pretende explicitar
e definir a memória dos «bons velhos tempos». A dinastia neo-suméria de Ur não
tinha de viver à sombra de Akkad, mas, sim, continuar a tradição do Período
Dinástico Primitivo.
O quarto e
último dos textos sumérios, é a chamada Lista dos Reis, obra
claramente historiográfica cujas fontes provinham de Kish e Uruk, nela
regressamos à ideia de história como sequência porquanto cada dinastia
experimenta a passagem de tempos bons a
tempos maus. As
mudanças históricas eram motivadas pela vontade soberana dos deuses. A ideia de
história como sequência de tempos aparece-nos cada vez mais relacionada com o
legado sumério. O soberano e a relação que este detinha com os deuses aparecem
no centro desta historiografia – nas construções, nas reformas sociais, nos
empreendimentos militares, no próprio destino dos seus reinos. A ideia de
dinastia apareceu muito cedo, e seguramente, que a continuidade linear da
realeza e das dinastias era uma concepção fundamental da Lista dos
Reis suméria. Esta obra é um dos mais importantes testemunhos da
tradição histórica suméria e contém uma longa série de soberanos, sistematizada
em dinastias e plena de indicações acerca da duração dos reinados, desde o dilúvio, ao termo da
dinastia de Isin.
A Lista é uma obra historiográfica apesar da escassa
informação histórica, onde se salienta um característico encadeamento, i.e., a
realeza em Babilónia esteve desde o princípio numa cidade
e num rei. Mas vários eram os monarcas a dominar cada um a sua
parte do país. A tradição, tinha, todavia, de se submeter às ambições
hegemónicas dos reis dominantes. A solução foi a colocação em sucessão de
monarcas que reinaram simultaneamente, suprimindo-se uma dinastia na sua
totalidade, apesar de alguns reis importantes dela terem feito parte. A visão
desejada era, assim, obtida por motivação divina, «todas» as vicissitudes
«passadas» até a um dado momento presente falavam da legitimidade de uma só
dinastia e de um só rei de todo o país, através da
legitimidade das ambições da última dinastia mencionada. Chegados ao último rei
da dinastia neo-suméria de Ur III, o texto que se refere ao seu reinado
evidencia já maus tempos.
8Quanto à
historiografia Semita, a primeira impressão que se tem de povos como os
Babilónios e os Assírios é a de um grande interesse pelo passado. Esta
valorização foi fomentada pela escola através da sua curiosidade, e pelos
desejos do trono e do altar de fundamentarem a sua legitimidade. Assim, os
estudiosos das dinastias semíticas de Isin, Larsa e Babilónia, copiaram
sistematicamente textos históricos do Império de Akkad.
9O trono e os
seus interesses não dispensaram os serviços da história, e assim, vemos
acontecimentos políticos do século XII a.C. serem legitimados através de uma
alegada profecia do rei divinizado em vida, Shulgi, da III dinastia de Ur. O
rei assírio Assurbanípal ao narrar a pacificação dos Elamitas tinha como
justificação a religião e a história. Os Semitas herdaram-na dos Sumérios a
concepção linear das incursões no passado. Contudo, estavam muito para além dos
seus antecessores tanto na quantidade das produções historiográficas como na
diversidade dos seus géneros utilizados.
10A versão
acádica de uma inscrição monumental bilingue originária de Nippur enumera as
vitórias de Sargão sobre Lugalzaggesi. 2350 anos a.C., rei de Uruk que submeteu
as cidades-estados de Ur, Lagash e Umma. E para além das fronteiras do império
ainda aparecem Mari e Elam vencidas pelo rei acádico. Na escrita não se
ultrapassava o limite histórico da vida de Sargão. Mais moderno nos parece o
escriba de Entemena, que situou num contexto alargado os acontecimentos políticos
da sua temporalidade.
Para observarmos
uma ordenação científica da
história, temos que andar mais uns séculos para a frente. A presunção de que
nem todos os tempos históricos eram
iguais, que havia um número limitado de tempos
diversos e que era útil para o presente e até para o futuro conhecer os tempos do passado, era um pressuposto
subjacente à ciência dos augúrios.
A ideia da
história aí presente é a de que os diversos quadros das situações históricas
voltam a ocorrer. A sequência é que apenas será trazida à luz pela ciência dos
presságios, à luz da sintomatologia que no passado evidenciara cada um dos
eventos. Não se pensava que um estado causava outro, apenas sucedia a outro.
Ainda menos se pensava que a história podia ter uma meta ou uma finalidade. Em
todo o caso, procuram-se ordenar as situações: a ciência dos augúrios compilava
as suas listas de tempos. Aí está um desenvolvimento da Listenwissenschaft e
a teoria da história sumérias enquanto sequência de períodos bons e períodos
maus.
Da tradição
semita salientamos dois textos, desde logo, a chamada Crónica de
Weidner paleobabilónica tido, por Speiser, como o primeiro
compêndio mesopotâmico sobre a ideia de história. Trata-se de uma obra cujo
carácter partidário e doutrinário a rebaixam em relação ao nível do melhor
pensamento do seu tempo, mas não deixa de ser, apesar de tudo, uma obra
historiográfica.
A ideia de
história é simples — a ascenção e queda dos reis depende sempre da atitude
destes para com o Esagil, o grande templo de Marduk em Babilónia. Os que
negligenciaram ou insultaram Babilónia, Marduk e o seu culto tiveram um fim miserável,
ao passo que todos os que cumpriram viveram felizes e prósperos.
Consequentemente, estavam avisados os soberanos presentes e futuros de se
absterem de não cuidar de Babilónia e do seu deus principal. A ideia de
história reduz-se a uma simplicidade extrema, quase numa uniformidade monótona.
Independentemente de um ou outro presságio e a Lista de Reis suméria,
não se vislumbra aonde terá o autor ido informar-se acerca da sorte e das
desgraças dos intervenientes da história. As motivações parecem variar: pesca
ritual, libações no Esagil, fundação de uma cidade rival de Babilónia, maus
tratos aos habitantes da capital. Mas, por detrás das vicissitudes do poder e
da história, perfilam-se duas constantes: por um lado, a figura do «grande
senhor, Marduk», que recompensava e punia; por outro, um bom acto a ditar a
recompensa e um crime a desencadear o castigo, se não as duas coisas em
sucessão. Desse modo, permanecia no discurso de tradição acádica o esquema
fundamental sumério — a história é a sequência de tempos bons e tempos maus.
Contudo, surge aqui a ideia de correspondência entre acto e pagamento. Os deuses
recompensavam os méritos e puniam as transgressões dos reis, os únicos
responsáveis pelos destinos da nação, por isso não agiam com arbitrariedade
total.
Da simples
sequência temporal surge a consequência da acção humana, e atinge-se a uma
espécie de formulação genérica: aquele
que peca contra os deuses desta cidade, a sua estrela não será estável no céu, aparecendo
deste modo um corolário da concepção semítica do pecado. Os Semitas com a sua
concepção de culpa mudam a visão mais simplista dos Sumérios, a história não
era uma simples sequência de tempos humanamente neutros mas, mais, uma
consequência da ação humana, merecedora de prémio ou castigo divino. Toda a
literatura historiográfica posterior trabalhará com essa concepção de história.
História é consequência da ação humana;
o mal irrompe necessariamente sobre quem peca contra a ordem divina, sobre quem
infringe o pacto estabelecido no juramento oficial.
Os Semitas tal
como os Sumérios não se preocuparam com a objetividade histórica, tal como nós
a concebemos. O passado apenas interessava enquanto ajudasse a reconhecer e
sobretudo a moldar o presente.
O produtor de
teoria da época tinha de se referir a Marduk porque queria fundamentar
historicamente as pretensões hegemónicas daquele deus. A finalidade
didáctica e mesmo propangandística foi um motivo comum na historiografia de
Assírios e Babilónios. Mas a causalidade, uma questão importante na
historiografia moderna, não existia senão na relação entre deuses e homens, uma
questão categórica da mundividência mesopotâmica. E mau grado o que
correntemente se escuta, a história não era cíclica para Assírios e Babilónios,
não fazendo o passado, o presente e o futuro parte de um fluxo contínuo de
eventos originários de um passado distante, sem meio nem fim, por isso os
Deuses e os Homens continuavam ad infinitum.
Entre os lados
positivos da historiografia e da ideia de história de raiz acádica está a sua
percepção de que certos eventos eram merecedores de serem recordados e contados
para o futuro, sabendo-se elevar, desde os mais recuados tempos, ao nível de
elaborar observações acerca da verdade histórica. Assim vimos uma inscrição, a
de Rimush, concluir: Por Shamash a Aba,
juro que não são mentiras: é absolutamente verdade.
A Lista dos
mais antigos reis de Babilónia designada por Crónica dos Reis Antigos,
também chamada Crónica de King em honra do primeiro editor, narra
uma sequência de acontecimentos ocorridos na Mesopotâmia entre Sargão de Akkad
e o cassita Agum III, 1.450 anos a.C., sendo a Crónica de Weidner uma
das suas fontes, outras seriam os presságios históricos, de onde o autor
recolheu a maioria dos dados que fornece sobre Sargão e Naram-Sin, tendo em
muitos casos uma simetria verbal.
O período
marcante da história iniciado com a conquista e saque de Babilónia por
Senaqueribe, 689 anos a.C., considerado uma terrível atrocidade do ponto de
vista dos vencidos foi matéria de duas crónicas neobabilónicas: Crónica
de Akîtu e Crónica de Assarhadão.
A primeira é
uma descrição das interrupções das festividades do Ano Novo babilónico em honra
de Marduk, entre a conquista de Senaqueribe e a entronização de Nabopolassar, 626
anos a.C.. Mas não se relacionam quaisquer perturbações políticas com a
interrupção das festividades.
A segunda
descreve acontecimentos dos reinados de Assarhadão, 680-669 nos a.C., e
Shamash-shum-ukin, 668-648 anos a.C.. O texto possui de estranho o fato de ser
o Assírio apresentado muito favoravelmente por um cronista babilónico. Mas não
nos podemos esquecer que Assarhadão era reconhecido oficialmente pelos
Babilónios como seu rei, e talvez isso explique o teor da narrativa.
Gadd descobriu
e publicou uma crónica em que se evoca a emergência do império neobabilónico. O
último império da antiga Mesopotâmia erguia-se sobre os escombros da Assíria.
Seguramente, seria fácil para um cronista narrar eventos felizes. Mas a outro
estaria reservada a missão espinhosa de levantar o óbito do império que
Nabucodonosor II, 604-562 anos a.C., dotara de grande esplendor e fama.
É claro o
conceito de historiografia histórica e de história, um exemplo de êxito, deve
ser seguido e perpetuado por descendentes alertados. Simultaneamente e
condicionando a ação das divindades, actuam os homens como sujeitos da
história. Esta, tal como a perceberam os Semitas, não era uma simples sequência
de planos delineados nos céus pelos grandes deuses. A história era uma
consequência de atos humanos, concretamente, dos pecados dos soberanos.
Os Assírios
também cultivaram uma tradição cronística, o que é atestado de forma indireta
pela chamada História Sincrónica, que relata as relações entre
assírios e babilónicos.
As versões
definitivas da Lista dos Reis suméria são resultantes do inquérito
historiográfico. Não só os exemplares cuneiformes disponíveis provêm do período
paleobabilónico, mas a própria lista suméria está de tal forma conectada com a
antiga metrópole de Hammurabi que ficou conhecida por Lista dos mais antigos reis de Babilónia. É também com Babilónia
que alguns autores clássicos ligam a tradição de perpetuar os soberanos em
listas e memórias, desde as origens mais recuadas do país à época
helenística.
A Linhagem da
Dinastia de Hammurabi pode não se inserir na tradição das listas de reis,
destinadas a reivindicar pretensões a um trono discutido ou a hegemonia a nível
regional. O mais curioso é que os remataram a narrativa com um resumo da
genealogia e, simultaneamente, com a uma ampla síntese e periodização conhecida
da história mesopotâmica. Alguns autores debatem se a Lista dos
Reis, ao contrário da Linhagem, utiliza a tradição
dos antepassados por motivos obscuros. Todavia, na viragem do I milénio a.C.,
a Lista comummente aceite sem discussão pelos círculos de
letrados assírios; em tempos anteriores, teria sido utilizada por facções
empenhadas em justificar e legitimar as reivindicações da linhagem de
Shamshi-Adad ao trono de Assur. O fato de, por mais de um século, nem Shamshi-Adad
nem o seu filho Ishme-Dagan, 1.780-1.781 anos a.C., terem sido considerados
legítimos representantes da linhagem real assíria não entra em contradição, com
esta presunção.
Manoel Messias
Santos
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