sexta-feira, 10 de setembro de 2021

 A historiografia e o tempo na Mesopotâmia

Embora, a civilização mesopotâmica possua traços comuns a relação entre a historiografia e o tempo deverá ser observada, primeiramente, no legado sumério, e em seguida na tradição dos povos semitas. Não esquecendo, porém, que elas são interdependentes, mas que a matriz suméria atravessa os tempos e as escritas. É claro, que a noção de história e de historiografia era bem diferente da nossa. Na Suméria, a composição escrita deixou muitas referências históricas diretas, mas poucas peças literárias a que possamos designar de historiográficas. Os dois géneros mais conhecidos são, talvez, as crónicas, um género de texto histórico que regista uma série de acontecimentos classificados em geral pelos anos do reinado dos soberanos. E as inscrições reais, que eram textos com um carácter monumental redigidos por monarcas desejosos de assegurar a sua fama, e de afirmar a sua piedade ou de imortalizar a memória dos seus actos principais, tal como a construção de raiz ou a reconstrução de um templo ou de um palácio, ou para celebrar os acontecimentos gloriosos do seu reinado. Este foi um género literário bastante característico da Mesopotâmia antiga. As mais velhas inscrições reais remontam à época suméria arcaica e inauguraram uma tradição que não se deteve até à época selêucida.

As inscrições sumérias preocupavam-se em documentar o tempo presente visando o seu futuro conhecimento. Algumas delas viam de forma retrospectiva as circunstâncias e os factos passados, revelando um sentido do pormenor histórico pouco comum nesses tempos recuados. Catalogavam e sistematizavam, pretendendo criar ordem e inteligibilidade no caos natural. Ordenavam os períodos históricos do passado, estando as inscrições ao nível da documentação arquivística, ou seja, do simples encadeamento de dados particulares não contextualizados num todo.

Salientamos quatro textos produzidos pela historiografia suméria, o primeiro deles, é um documento proveniente de Lagash, dos arquivos de Entemena, datado de cerca de 2430 a.C., conhecido como a Inscrição de Entemena e que nos relata a disputa entre as cidades de Umma e de Lagash a propósito da fronteira comum. Toda a narrativa tem lugar durante duas gerações – a de Eanatum e a de seu sobrinho Entemena. O narrador não enumera apenas com exactidão os factos ocorridos na sua época. Ele foi às origens, e remotou à época de Mesilim, rei de Kish, trocando, assim, a arquivística pela história, e, desse modo, contextualizando os acontecimentos.

O segundo documento, trata da descrição da libertação da Suméria por Utuhegal, 2116-2110 a.C. que se encontra num texto conhecido por A Guerra dos Seis Dias, a ação desenrola-se numa série de quadros, expostos ao longo das tabuinhas, e que consistem em múltiplas situações, como uma inflamada oração do herói e da cidade de Uruk a lanana, ou a ida para a guerra sob a proteção divina. No texto está patente a convicção de que os homens executam uma missão divina; o que, todavia, dão dispensa elementos da acção humana, a saber: – a preparação psicológica da população, o alistamento dos combatentes, as trocas de missivas, a perseguição e captura do inimigo. Estamos, pois, perante uma sucessão de tempos: os tempos maus e os tempos bons. Esta é uma imagem claramente ligada à ideia suméria de história.

Os tempos maus eram a consequência de um pecado cometido por Naram-Sin, que saqueara a cidade santa de Nippur, e que, consequentemente, ofendera Enlil com o sacrilégio. Em consequência, o deus envia os Gútios contra Akkad. Trata-se de um interessante texto historiográfico, onde se salienta um estilo vivo em que se utiliza uma sequência de quadros cujo ritmo vai avançando após o quarto dia, antecipando a narrativa da fuga precipitada de Tirigan, o rei dos Gútios que terminaria morto às mãos daqueles a quem ele oprimira. Para alguns autores este «é claramente um modelo de história teocrática, em que se reserva aos deuses o papel decisivo na determinação e condução dos eventos». O terceiro texto trata da queda do império de Akkad às mãos dos Gútios, e designa-se A Maldição de Agade. De facto, no texto, confluem diversas tradições e diversas interpretações do facto histórico. É patente em toda a composição a tendência de inserir num fundo religioso a tradição da queda de Akkad. Não porque existisse qualquer pretensão do rei de Akkad de dominar a dinastia neo-suméria de Ur. O que estava subjacente era a tradição de uma época de felicidade ainda não muito longínqua centrada ao norte e, em contraposição, a dúvida sobre a legitimidade das relações de força da época em que se vivia.

O texto A Maldição de Agade, combinou as tradições acerca da invasão dos Gútios, a ruína de Akkad, a existência de um soberano rival de Naram-Sin, em Nippur, uma crise económica desta cidade nos fins do Império Acádico, e pretende explicitar e definir a memória dos «bons velhos tempos». A dinastia neo-suméria de Ur não tinha de viver à sombra de Akkad, mas, sim, continuar a tradição do Período Dinástico Primitivo.

O quarto e último dos textos sumérios, é a chamada Lista dos Reis, obra claramente historiográfica cujas fontes provinham de Kish e Uruk, nela regressamos à ideia de história como sequência porquanto cada dinastia experimenta a passagem de tempos bons a tempos maus. As mudanças históricas eram motivadas pela vontade soberana dos deuses. A ideia de história como sequência de tempos aparece-nos cada vez mais relacionada com o legado sumério. O soberano e a relação que este detinha com os deuses aparecem no centro desta historiografia – nas construções, nas reformas sociais, nos empreendimentos militares, no próprio destino dos seus reinos. A ideia de dinastia apareceu muito cedo, e seguramente, que a continuidade linear da realeza e das dinastias era uma concepção fundamental da Lista dos Reis suméria. Esta obra é um dos mais importantes testemunhos da tradição histórica suméria e contém uma longa série de soberanos, sistematizada em dinastias e plena de indicações acerca da duração dos reinados, desde o dilúvio, ao termo da dinastia de Isin.Lista é uma obra historiográfica apesar da escassa informação histórica, onde se salienta um característico encadeamento, i.e., a realeza em Babilónia esteve desde o princípio numa cidade e num rei. Mas vários eram os monarcas a dominar cada um a sua parte do país. A tradição, tinha, todavia, de se submeter às ambições hegemónicas dos reis dominantes. A solução foi a colocação em sucessão de monarcas que reinaram simultaneamente, suprimindo-se uma dinastia na sua totalidade, apesar de alguns reis importantes dela terem feito parte. A visão desejada era, assim, obtida por motivação divina, «todas» as vicissitudes «passadas» até a um dado momento presente falavam da legitimidade de uma só dinastia e de um só rei de todo o país, através da legitimidade das ambições da última dinastia mencionada. Chegados ao último rei da dinastia neo-suméria de Ur III, o texto que se refere ao seu reinado evidencia já maus tempos.

8Quanto à historiografia Semita, a primeira impressão que se tem de povos como os Babilónios e os Assírios é a de um grande interesse pelo passado. Esta valorização foi fomentada pela escola através da sua curiosidade, e pelos desejos do trono e do altar de fundamentarem a sua legitimidade. Assim, os estudiosos das dinastias semíticas de Isin, Larsa e Babilónia, copiaram sistematicamente textos históricos do Império de Akkad.

9O trono e os seus interesses não dispensaram os serviços da história, e assim, vemos acontecimentos políticos do século XII a.C. serem legitimados através de uma alegada profecia do rei divinizado em vida, Shulgi, da III dinastia de Ur. O rei assírio Assurbanípal ao narrar a pacificação dos Elamitas tinha como justificação a religião e a história. Os Semitas herdaram-na dos Sumérios a concepção linear das incursões no passado. Contudo, estavam muito para além dos seus antecessores tanto na quantidade das produções historiográficas como na diversidade dos seus géneros utilizados.

10A versão acádica de uma inscrição monumental bilingue originária de Nippur enumera as vitórias de Sargão sobre Lugalzaggesi. 2350 anos a.C., rei de Uruk que submeteu as cidades-estados de Ur, Lagash e Umma. E para além das fronteiras do império ainda aparecem Mari e Elam vencidas pelo rei acádico. Na escrita não se ultrapassava o limite histórico da vida de Sargão. Mais moderno nos parece o escriba de Entemena, que situou num contexto alargado os acontecimentos políticos da sua temporalidade.

Para observarmos uma ordenação científica da história, temos que andar mais uns séculos para a frente. A presunção de que nem todos os tempos históricos eram iguais, que havia um número limitado de tempos diversos e que era útil para o presente e até para o futuro conhecer os tempos do passado, era um pressuposto subjacente à ciência dos augúrios.

A ideia da história aí presente é a de que os diversos quadros das situações históricas voltam a ocorrer. A sequência é que apenas será trazida à luz pela ciência dos presságios, à luz da sintomatologia que no passado evidenciara cada um dos eventos. Não se pensava que um estado causava outro, apenas sucedia a outro. Ainda menos se pensava que a história podia ter uma meta ou uma finalidade. Em todo o caso, procuram-se ordenar as situações: a ciência dos augúrios compilava as suas listas de tempos. Aí está um desenvolvimento da Listenwissenschaft e a teoria da história sumérias enquanto sequência de períodos bons e períodos maus.

Da tradição semita salientamos dois textos, desde logo, a chamada Crónica de Weidner paleobabilónica tido, por Speiser, como o primeiro compêndio mesopotâmico sobre a ideia de história. Trata-se de uma obra cujo carácter partidário e doutrinário a rebaixam em relação ao nível do melhor pensamento do seu tempo, mas não deixa de ser, apesar de tudo, uma obra historiográfica.

A ideia de história é simples — a ascenção e queda dos reis depende sempre da atitude destes para com o Esagil, o grande templo de Marduk em Babilónia. Os que negligenciaram ou insultaram Babilónia, Marduk e o seu culto tiveram um fim miserável, ao passo que todos os que cumpriram viveram felizes e prósperos. Consequentemente, estavam avisados os soberanos presentes e futuros de se absterem de não cuidar de Babilónia e do seu deus principal. A ideia de história reduz-se a uma simplicidade extrema, quase numa uniformidade monótona. Independentemente de um ou outro presságio e a Lista de Reis suméria, não se vislumbra aonde terá o autor ido informar-se acerca da sorte e das desgraças dos intervenientes da história. As motivações parecem variar: pesca ritual, libações no Esagil, fundação de uma cidade rival de Babilónia, maus tratos aos habitantes da capital. Mas, por detrás das vicissitudes do poder e da história, perfilam-se duas constantes: por um lado, a figura do «grande senhor, Marduk», que recompensava e punia; por outro, um bom acto a ditar a recompensa e um crime a desencadear o castigo, se não as duas coisas em sucessão. Desse modo, permanecia no discurso de tradição acádica o esquema fundamental sumério — a história é a sequência de tempos bons e tempos maus. Contudo, surge aqui a ideia de correspondência entre acto e pagamento. Os deuses recompensavam os méritos e puniam as transgressões dos reis, os únicos responsáveis pelos destinos da nação, por isso não agiam com arbitrariedade total.

Da simples sequência temporal surge a consequência da acção humana, e atinge-se a uma espécie de formulação genérica: aquele que peca contra os deuses desta cidade, a sua estrela não será estável no céu, aparecendo deste modo um corolário da concepção semítica do pecado. Os Semitas com a sua concepção de culpa mudam a visão mais simplista dos Sumérios, a história não era uma simples sequência de tempos humanamente neutros mas, mais, uma consequência da ação humana, merecedora de prémio ou castigo divino. Toda a literatura historiográfica posterior trabalhará com essa concepção de história. História é consequência da ação humana; o mal irrompe necessariamente sobre quem peca contra a ordem divina, sobre quem infringe o pacto estabelecido no juramento oficial.

Os Semitas tal como os Sumérios não se preocuparam com a objetividade histórica, tal como nós a concebemos. O passado apenas interessava enquanto ajudasse a reconhecer e sobretudo a moldar o presente.

O produtor de teoria da época tinha de se referir a Marduk porque queria fundamentar historicamente as pretensões hegemónicas daquele deus. A finalidade didáctica e mesmo propangandística foi um motivo comum na historiografia de Assírios e Babilónios. Mas a causalidade, uma questão importante na historiografia moderna, não existia senão na relação entre deuses e homens, uma questão categórica da mundividência mesopotâmica. E mau grado o que correntemente se escuta, a história não era cíclica para Assírios e Babilónios, não fazendo o passado, o presente e o futuro parte de um fluxo contínuo de eventos originários de um passado distante, sem meio nem fim, por isso os Deuses e os Homens continuavam ad infinitum.

Entre os lados positivos da historiografia e da ideia de história de raiz acádica está a sua percepção de que certos eventos eram merecedores de serem recordados e contados para o futuro, sabendo-se elevar, desde os mais recuados tempos, ao nível de elaborar observações acerca da verdade histórica. Assim vimos uma inscrição, a de Rimush, concluir: Por Shamash a Aba, juro que não são mentiras: é absolutamente verdade.

A Lista dos mais antigos reis de Babilónia designada por Crónica dos Reis Antigos, também chamada Crónica de King em honra do primeiro editor, narra uma sequência de acontecimentos ocorridos na Mesopotâmia entre Sargão de Akkad e o cassita Agum III, 1.450 anos a.C., sendo a Crónica de Weidner uma das suas fontes, outras seriam os presságios históricos, de onde o autor recolheu a maioria dos dados que fornece sobre Sargão e Naram-Sin, tendo em muitos casos uma simetria verbal.

O período marcante da história iniciado com a conquista e saque de Babilónia por Senaqueribe, 689 anos a.C., considerado uma terrível atrocidade do ponto de vista dos vencidos foi matéria de duas crónicas neobabilónicas: Crónica de Akîtu Crónica de Assarhadão.

A primeira é uma descrição das interrupções das festividades do Ano Novo babilónico em honra de Marduk, entre a conquista de Senaqueribe e a entronização de Nabopolassar, 626 anos a.C.. Mas não se relacionam quaisquer perturbações políticas com a interrupção das festividades.

A segunda descreve acontecimentos dos reinados de Assarhadão, 680-669 nos a.C., e Shamash-shum-ukin, 668-648 anos a.C.. O texto possui de estranho o fato de ser o Assírio apresentado muito favoravelmente por um cronista babilónico. Mas não nos podemos esquecer que Assarhadão era reconhecido oficialmente pelos Babilónios como seu rei, e talvez isso explique o teor da narrativa.

Gadd descobriu e publicou uma crónica em que se evoca a emergência do império neobabilónico. O último império da antiga Mesopotâmia erguia-se sobre os escombros da Assíria. Seguramente, seria fácil para um cronista narrar eventos felizes. Mas a outro estaria reservada a missão espinhosa de levantar o óbito do império que Nabucodonosor II, 604-562 anos a.C., dotara de grande esplendor e fama.

É claro o conceito de historiografia histórica e de história, um exemplo de êxito, deve ser seguido e perpetuado por descendentes alertados. Simultaneamente e condicionando a ação das divindades, actuam os homens como sujeitos da história. Esta, tal como a perceberam os Semitas, não era uma simples sequência de planos delineados nos céus pelos grandes deuses. A história era uma consequência de atos humanos, concretamente, dos pecados dos soberanos.

Os Assírios também cultivaram uma tradição cronística, o que é atestado de forma indireta pela chamada História Sincrónica, que relata as relações entre assírios e babilónicos.

As versões definitivas da Lista dos Reis suméria são resultantes do inquérito historiográfico. Não só os exemplares cuneiformes disponíveis provêm do período paleobabilónico, mas a própria lista suméria está de tal forma conectada com a antiga metrópole de Hammurabi que ficou conhecida por Lista dos mais antigos reis de Babilónia. É também com Babilónia que alguns autores clássicos ligam a tradição de perpetuar os soberanos em listas e memórias, desde as origens mais recuadas do país à época helenística.

Linhagem da Dinastia de Hammurabi pode não se inserir na tradição das listas de reis, destinadas a reivindicar pretensões a um trono discutido ou a hegemonia a nível regional. O mais curioso é que os remataram a narrativa com um resumo da genealogia e, simultaneamente, com a uma ampla síntese e periodização conhecida da história mesopotâmica. Alguns autores debatem se a Lista dos Reis, ao contrário da Linhagem, utiliza a tradição dos antepassados por motivos obscuros. Todavia, na viragem do I milénio a.C., a Lista comummente aceite sem discussão pelos círculos de letrados assírios; em tempos anteriores, teria sido utilizada por facções empenhadas em justificar e legitimar as reivindicações da linhagem de Shamshi-Adad ao trono de Assur. O fato de, por mais de um século, nem Shamshi-Adad nem o seu filho Ishme-Dagan, 1.780-1.781 anos a.C., terem sido considerados legítimos representantes da linhagem real assíria não entra em contradição, com esta presunção.

 

Manoel Messias Santos

 

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