quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

 

Agostinho – A Cidade de Deus.

Dois amores construíram duas cidades. O amor a si até o desprezo de Deus, a cidade terrestre. O amor a Deus até o desprezo de si, a cidade celeste. Uma glorifica a si mesma, a outra no Senhor.

3 O Homem e a sociedade na concepção de Santo Agostinho Ao longo deste terceiro capítulo se verificará que a reflexão do sábio teólogo a cerca do homem se confunde com sua experiência pessoal de busca, inquietação e anseio pela verdade. O homem dotado de liberdade e vontade carece portanto da graça divina para optar pelo bem. A liberdade foi concedida ao ser humano para que ele procurasse a Verdade com mais confiança e afinco. Porém, agindo contra si mesmo e o seu Criador, o homem optou pelos seus próprios caminhos. Com isso, sua natureza tornou-se fraca e débil. A imagem da Cidade Terrestre e da Cidade Celeste, representa o critério que o pastor de Hipona usou para dividir a história da humanidade. Doravante desde o pecado de Caim, a Torre de Babel, a fundação de Roma, todas as guerras e revoltas da humanidade são frutos do amor concupiscente. O único amor capaz de sustentar os projetos humanos é o amor de Deus. 3.1 A Origem e o Conceito de Homem O doutor de Hipona, quando define o homem, faz questão de distingui-lo das outras criaturas pela racionalidade, ou seja, capacidade intelectiva. Santo Agostinho afirma que o ser humano é portador de uma alma imortal. Para ele, esta é responsável pelo governo das faculdades humanas. Na sua explanação sobre a origem do homem, o teólogo hiponense assegura que o ser humano teve sua origem em Deus, único capaz de preencher as expectativas terrenas e celestes que todo homem traz consigo. Isso o exímio teólogo sempre ensinou. Ele tinha como base sua própria história pessoal. O santo pastor depois de sua conversão ao cristianismo passou a assegurar que somente em Deus está a autêntica felicidade. Observando a vasta obra da criação, nela sobressai o homem que ocupa um lugar singular no plano de Deus.103 O ser humano e o universo inteiro tiveram sua origem na bondade do Criador. O pastor de Hipona deixa claro nas suas obras que o ser humano é composto pela união da alma e do corpo. Segundo esta linha de pensamento agostiniana, o 103 Os platônicos afirmavam que a Criação fora realizada de maneira hierárquica, ou seja os deuses inferiores, anjos foram formados por Deus (Superior). Por sua vez os inferiores teriam criado os animais e os homens. Deles recebendo a parte mortal, enquanto a imortalidade dependia do Deus Superior. 103 Ibid., p. 369 52 homem não pode ser estudado e nem compreendido na sua totalidade sem estas duas dimensões. Este ponto é frisado por Santo Agostinho no diálogo com Navígio, onde explicita sua doutrina acerca desse assunto: “Parece-vos evidente que somos compostos de uma alma e de um corpo? Como todos concordam, exceto Navígio que declarou ignorar esse assunto, eu disse-lhe: Não sabes nada, absolutamente... Sabes igualmente que tens um corpo? Concordou. Já sabes, portanto, que és composto de um corpo e de uma alma”.1 Ao mesmo tempo em que o teólogo da graça defende a tese de que o homem tem um lugar de destaque no mundo criado, ele não nega a existência das limitações que o homem possui. Foi por desígnio de amor que Deus trouxe o ser humano à vida. Tendo sido criado do nada, a Criatura busca o Absoluto que é Deus. Isso explica o motivo da inquietação do homem. Nenhuma realidade deste mundo pode satisfazer o desejo de paz que pulsa no coração humano. Santo Agostinho viveu intensamente este itinerário. Quando fala dos problemas do homem o seu relato confunde-se com sua experiência pessoal. De fato, o homem é a única criatura no cenário da Criação que é capaz de Deus. Tem no seu âmago a vontade de comunhão - dialogante com Deus - Criador. O conceito Agostiniano de homem está fundamentado nas Sagradas Escrituras e na própria busca incessante da verdade absoluta do homem Agostinho. É a partir de si mesmo, da sua descoberta de Deus que o pastor de Hipona encontra a resposta para seus dramas e interrogações. Sua visão antropológica está toda permeada por uma caminhada marcada pelas lutas, paixões e desilusões que deixaram profundas cicatrizes na sua alma. Para entender a concepção agostiniana de homem, é necessária rever a trajetória percorrida pelo homem Agostinho. No doutor da graça, encontra-se um retrato completo do homem de seu tempo e de todos os tempos. Isso se deve ao fato de que o teólogo hiponense viveu intensamente sua humanidade, sobretudo quando aderiu à fé. Somente depois que abraçou a pessoa e a mensagem de Cristo, “O Deus que se fez homem,” é que Agostinho realmente se encontrou. Foi nesta circunstância que seu espírito especulativo e ansioso viu-se inundado pela luz da Suprema Verdade. Desse modo, adquiriu a chave que o libertou da escuridão do pecado em que estava. Como se percebe, o santo hiponense tem consciência da 1 De Beata Vita 12, 7. 53 dignidade do homem. Contudo, isso não o impede de reconhecer os defeitos da natureza humana. Na concepção Agostiniana, a atividade política nem sempre consegue salvaguardar a paz e a concórdia dos cidadãos devido às conseqüências que o pecado imprimiu no homem. Claro que esta lucidez do teólogo de Hipona sobre os desvios morais que o ser humano é capaz, deixaram um rastro de pessimismo na sua doutrina ético-política. Mas não anularam o ideal que ele apregoa da construção de uma sociedade pautada pelos princípios da justiça. Sendo que isso só se tornará uma realidade quando os cidadãos da polis derem a Deus o lugar que lhe compete na vida em sociedade. Como já se disse anteriormente, para Santo Agostinho, Deus deve estar em primeiro plano na ordem do amor. Quando disserta sobre o homem, o bispo de Hipona não contempla a pessoa humana apenas na sua individualidade. Ele estuda o ser humano dentro de um contexto social. Aliás, jamais o homem no pensamento agostiniano é apresentado sem o vínculo da sociedade. A antropologia do exímio teólogo de Hipona está profundamente enraizada na fé e no relacionamento com o próximo. É no convívio em sociedade que o homem torna-se cada vez mais pessoa. Cada ser humano traz consigo a imagem de Deus. Porém, pelo pecado carrega em si as marcas do pecado original. Daí vivendo em meio aos bens materiais que proporcionam a felicidade temporal o homem não deve perder-se no transitório. Há uma outra felicidade que é permanente que é Deus. Santo Agostinho afirma que o ser humano por si mesmo não tem condições de obter vitória nessa luta enquanto não mergulhar na palavra de Cristo. Na concepção agostiniana, existe uma espécie de homem interior e exterior. O santo pastor descreve que o homem interior seria aquele que transparece no que se tem realmente de humano. No íntimo do ser há o encontro da pessoa consigo mesma e com Deus. O homem exterior é representado por aquilo que se assemelha aos impulsos e instinto dos animais. É muito freqüente se deparar no pensamento de Santo Agostinho com as expressões superior e inferior bem como “íntimo e summo”. Isso significa o itinerário da procura humana do ser absoluto que é Deus.2 O homem foi criado com o desejo de buscar o Criador. Para isso, deve cada vez mais fixar seu olhar 2 Cf. NOVAES, Moacyr. O Exame da Temporalidade Humana Em Agostinho. Cadernos da Cepame, V. 1, p.29-41 mar-jun. 1992. 54 no alto. Ao contemplar as maravilhas da Criação, a matéria precisa ultrapassar o limiar terreno para chegar a conhecer os valores absolutos que lhe transcendem. Pode-se concluir que a antropologia de Santo Agostinho só pode ser compreendida sob o prisma da fé e do equilíbrio entre o individual e o social acrescido da perspectiva do homem visto como peregrino do absoluto. Vivendo entre o relativo e o efêmero, o ser humano só será plenamente realizado na medida em que não buscar nos bens mutáveis a felicidade verdadeira. Isso consiste no uso deles como um meio relativo e não um fim absoluto. 3.1.2 A Questão da Felicidade Como já acenei no tópico anterior, o santo pastor de Hipona explica o enigma do homem com o auxílio da fé depois de sua própria experiência pessoal. Como se sabe, a felicidade em Santo Agostinho sempre ocupou uma importância relevante. Ela, antes mesmo de sua conversão, já era algo pertinente nas suas buscas especulativas. Não se pode estudar o homem sem contudo saber como ele encontrará a felicidade e em que ela consiste. Na doutrina agostiniana sobre a felicidade, encontra-se a raiz do seu pensar filosófico e teológico. De fato, o “Finis Bonorum”, para o santo pastor, é a meta de todo ser humano. Até quando erra o homem está buscando, ainda que de forma desvirtuada, este bem.3 Contudo, para o bispo de Hipona somente os bons experimentam ou alcançam esta felicidade. Ele não hesita em afirmar que o homem só terá felicidade quando possuir o Sumo-Bem Deus. A questão da felicidade esteve sempre patente no pensamento do santo hiponense. De fato na sua doutrina, ela ocupa especial destaque. Não se trata apenas de um sentimento vago, pelo contrário, a felicidade em Santo Agostinho é um bem, estado de alma permanente que não se deixar perturbar facilmente. Aliás, Deus é a segurança daqueles que vivem unidos a Ele. Para o exímio teólogo a felicidade não é algo abstrato embora também não consista exclusivamente no uso dos bens materiais. Toda atividade humana tende para ela. Nesse ponto, ele dá ênfase ao pensar filosófico. A filosofia e a felicidade andam 3 Cf. Ep. 130, 4, 9. 55 juntas, pois o filósofo autêntico busca incansavelmente a felicidade.4 Nesta procura, acaba encontrando a Deus, pois somente Ele faz verdadeiramente feliz o ser humano.5 Se o filósofo é o amigo da sabedoria, então deve amar a Deus, pois o outro nome de Deus é sabedoria. Na visão Agostiniana, o conhecimento por excelência é Deus. Sem conhecê-lo é impossível que o homem seja plenamente realizado, tendo em vista não haver outro caminho pelo qual o ser humano possa encontrar a satisfação de suas aspirações mais profundas. Todo itinerário da busca agostiniana tem um objetivo, uma meta. Santo Agostinho ao propô-la não se perdeu em divagações desnecessárias. Para ele, a razão dessa procura é Deus. O problema consiste em saber como e onde encontrar esta felicidade: “Então, como Vos hei de procurar, Senhor? Quando Vos procuro, Meu Deus, busco a vida feliz... como procurar então a vida feliz? Não a alcançarei enquanto não exclamar: Basta, ei-la! Mas onde poderei dizer estas palavras?”6 A causa e a origem dessa procura da felicidade está no interior de cada homem, pois foi o próprio Criador que deixou na mente das suas criaturas humanas o desejo de procurá-lo.7 Contudo, Santo Agostinho sabe que essa felicidade nunca será plena na terra. A consumação da comunhão definitiva com Deus só se dará no céu: “A felicidade segue o mesmo caminho que a salvação, o da esperança. E como a salvação não a temos já, nós a esperamos futura, assim se passa com a felicidade (...) A salvação da outra vida será, por conseguinte a felicidade final. E os filósofos, que não querem crer porque não vêem, forjam a seu talante, fundados em virtude tanto mais enganosa quanto mais soberba, o fantasma da felicidade terrena.”8 È evidente que essas palavras do pastor hiponense não significam desprezo pela vida presente, já que nessa não se encontra a felicidade completa. Pelo contrário, o santo pastor vê nesta vida uma ocasião excelente de se viver antecipadamente a sabedoria que consiste em praticar o preceito cristão “Amar a Deus acima de tudo e ao próximo como a si mesmo”. Enquanto este mandamento divino não estiver no centro dos pensamentos e das resoluções dos homens, a felicidade temporal e eterna dos indivíduos e da sociedade tornar-se-á impossível. Nosso doutor volta a dizer que 4 Cf. De Civ. Dei VIII, 91. 5 Cf. Ep. 155, 2. 6 Conf. X, 20. 7 Cf. Conf. III, 6. 8 De Civ. Dei XIX, 4. 56 se o homem não ama a Deus será utópico o amor a si mesmo e aos seus semelhantes. Do amor ao Criador se desdobra o autêntico serviço a comunidade. Para isso, o exímio teólogo aponta o caminho das virtudes cardeais que ele chama de “vera pietas” que nada mais é do que a vivência das quatro virtudes cardeais: prudência, fortaleza, temperança e justiça. No pensamento agostiniano quando essas virtudes são levadas a sério, elas resumem a vida do homem piedoso que se esforça por amar o que deve ser amado. O exercício dessas virtudes está direcionado para o Sumo-Bem que praticando-a já possibilitam aos homens e à sociedade a concórdia e a paz. Na carta ao governador Macedônio, o doutor de Hipona deixa claro a necessidade de um homem de Estado procurar conservar a verdadeira piedade. Dela depende o êxito do bem-comum. Vejamos: “Então, se toda a tua prudência, com que te esforçar por procurar o bem comum das coisas humanas; se toda a tua fortaleza, com que te mostras corajoso em afrontar a maldade dos adversários; se toda a temperança, com que sabes preservar-te da corrupção em meio à lama dos mais depravados costumes humanos; se toda a justiça, com que julgando retamente dás a cada um o que é seu; se digo todas essas virtudes, como não será autêntica a felicidade deles... se a tua administração repito de qualquer espécie que seja, dotada das virtudes mencionadas, tem por único escopo preservar as pessoas de qualquer injustiça e moléstia física, e não reputas ser teu dever preocupar-te com o fim ao qual os mesmos façam servir esta tranqüilidade... De que modo adorem o verdadeiro Deus, no qual reside todo o gozo de toda vida tranqüila, todos os teus esforços de nada te serviriam para alcançar a verdadeira felicidade”.9 Como se percebe, a felicidade do homem e da sociedade tem a mesma fonte. Ela dimana da comunhão profunda dos governantes e dos governados com o Sumo-Bem. A felicidade não se limita apenas a um sentimento de bem-estar físico e a uma sensação de satisfação material. Ela engloba toda a pessoa. Ainda que a atividade política pareça ou tenha funções que digam respeito a problemas puramente terrenos, ela deve abrir-se para o absoluto. Afinal, ela visa o bem-comum dos cidadãos e estes por sua vez anseiam pelo transcendente. Daí aqueles que exercem cargos públicos não podem permanecer indiferentes ao fim último do homem. Isso sem descuidarem do bem-comum que consiste em buscar concórdia e a paz dos cidadãos. Do contrário, correram o risco de se perderem nos males desta vida procurando apenas a si mesmos. 9 Ep. 155, 10. 57 A felicidade do indivíduo nesta terra é apenas parcial como a da sociedade. Contudo, a concretização dela na pátria celeste está condicionada à prática da vera pietas que tem no seu centro a exortação agostiniana: “Beatus populus cujus dominus Deus ipsius”. Conclui-se que somente Deus pode proporcionar a felicidade ao homem singular e coletivo.10 A felicidade na doutrina Agostiniana seja ela individual ou coletiva, pode muito bem ser sintetizada na expressão “Frui Deo”. Ela significa a comunhão plena da criatura com o Criador. É participar da vida do próprio Deus. Evidentemente que para experimentá-la o homem necessita da fé. Sem ela, é impossível encontrar a felicidade. Santo Agostinho dirá muito após depois da sua conversão, que a beata vita não se identifica com qualquer prazer ou satisfação mundana: “Longe de mim, Senhor, longe do coração do teu servo, que se confessa diante de ti, longe o pensamento de que uma alegria qualquer possa torná-lo feliz. Há uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas aqueles que te servem por puro amor: essa alegria és tu mesmo. E esta é a felicidade: alegrar-nos em ti, de ti e por ti. É esta a felicidade, e não outra. Quem acredita que exista outra felicidade, persegue uma alegria que não é a verdadeira. Contudo, a sua vontade não se afasta de uma certa imagem de alegria.”11 Como se percebe, a partir dessas palavras do exímio teólogo, o desejo incessante de felicidade está gravado em todo ser humano. Ele foi impresso pelo próprio Criador. Porém, Deus não se impõe. Ele deixa livremente que os homens o busquem se deixando encontrar por aqueles que o procuram de coração sincero. E como já fora mencionado anteriormente, isso se realizou plenamente na vida de Agostinho. As várias escolas filosóficas da antigüidade perseguiam e almejavam a felicidade,12 porém divergiam quanto ao seu verdadeiro significado. A conversão de Agostinho trouxe uma luz que veio proporcionar às indagações dos filósofos mais clareza acerca do problema da felicidade. De fato, depois de inúmeras frustrações de ter buscado ser feliz em tantos gozos afetivos e mundanos, Agostinho constatou que a felicidade por excelência é um Deus. Ele se chama Cristo. Assumindo a natureza 10 Cf. RAMOS, Francisco M. Tomás. Op. Cit. P. 152-153. 11 Conf. X, 22. 12 As escolas filosóficas coincidiam em afirmar que o bem máximo era a chamada beatitude. Também para Agostinho os homens procuram a própria eudaimonia. Ela poderia ser alcançada segundo as correntes de filosofia clássicas com o prazer, prática da virtude, ou a procura da verdade. 58 humana, tornou acessível o caminho da felicidade. Aliás, Ele é a própria via que conduz os homens para a realização plena de suas aspirações. A sabedoria consiste em andar com Cristo, pois somente deixando-se iluminar por Ele o ser humano encontra a vida feliz. Na doutrina agostiniana a felicidade já começa quando o homem se dispõe a buscar Deus seguindo as pegadas de Cristo. Viver bem é procurar exclusivamente a Deus, praticar o amor caritas que consiste em amá-Lo sobre todas as coisas e servir ao próximo com sinceridade. Em outras palavras, se poderia dizer que somente a vivência autêntica do cristianismo possibilita no aqui e agora um certo antegozo da felicidade definitiva na pátria celeste. O homem que peregrina sobre a Terra, segundo Agostinho, só saberá o que é a felicidade quando abrir sua mente e seu coração para a sabedoria eterna que é Cristo. Aliás, a felicidade como tal está profundamente associada e condicionada a “vera religio” que o pastor de Hipona defende com firmeza. Neste sentido, a própria filosofia acabará por se identificar com a verdadeira religião. O homem de bem para o santo teólogo é aquele que aprecia a sabedoria que os autênticos filósofos investigam e vêem no Filho de Deus sua suprema revelação. Não esquecem, porém, que a doutrina trazida por Cristo é portadora de princípios que ultrapassa o individual e lançam luzes sobre a ordem social, pois o homem é sempre um ser sociável. Filosofia e religião devem trabalhar juntas. E se realmente forem verdadeiras proporcionarão aos homens o caminho seguro que facilitará a implantação da concórdia e da paz. A vera religio é vista por Santo Agostinho como único meio de libertação dos males individuais e sociais da humanidade.13 No pensamento Agostiniano, é ela que ligando o ser humano com Deus levá-o a amar de verdade desvencilhando-se do egoísmo desenfreado. A prática da verdadeira religião, que consiste no culto do único Deus de Abraão, vence as tendências supersticiosas dos habitantes da Cidade terrena. Ela, quando é vivida intensamente, constitui uma bênção, pois é o fundamento da Cidade Celeste.14 Nela reina a paz e a justiça porque se dá a Deus o que o é Dele. Os que peregrinam neste mundo e se sentem chamados a promover a concórdia e a paz, ou seja o bem comum, devem olhar para a harmonia que já existe entre os cidadãos da cidade do alto. Ela não é resultado apenas do esforço humano e fruto de negociações puramente racionais. Lá já se vive sobre o 13 De Quant. Animae XXXIV, 78. 14 De Civ. Dei IV, 1. 59 prisma da justiça, porque seus membros se amam em Deus e por isso se ajudam mutuamente. A “religio christiana”. que tem seu ponto focal em Cristo, possui em plenitude todos os meios que os homens necessitam para possuírem a felicidade. Para o exímio teólogo, não há outra via pela qual os seres humanos possam abraçar a verdade. Na doutrina agostiniana, já se pode, desde o exílio desta vida buscar com fé e humildade: “O verdadeiro mediador, que tua insondável misericórdia manifestou e enviou aos homens, a fim de que aprendessem a humildade a exemplo dele, este mediador entre Deus e os homens é o homem Jesus Cristo. Ele se apresentou entre os pecadores mortais e o justo imortal como os homens e justo como Deus.”15 Dessas palavras do santo Pastor, conclui-se que Jesus Cristo é a única felicidade dos homens. É da prática de seus preceitos que desabrocham para a sociedade toda as graças; sem Ele é impossível que alguém seja feliz nesta vida e muito menos justo com seus semelhantes. A lei que Ele instaurou no mundo, amar a Deus e ao próximo como si mesmo, é a grande máxima da felicidade. Uma sociedade que deseja livrar-se do individualismo exacerbado não deve fechar-se para Cristo. O mal da injustiça e das desigualdades sociais só será sanado quando a ânsia de enriquecer-se de alguns for vencida pelos propósitos de servir. Se os homens não aderirem aos princípios da beata vita, aqui e agora nunca viverão em paz consigo e com os outros. O resultado será a perca da felicidade temporal que acarretará a infelicidade eterna. 3.2 O problema da Liberdade e da Vontade 3.2.1 O livre-arbítrio e a Liberdade no Pensamento Agostiniano Como já me referi ao princípio do Uti-Frui no capítulo dois, agora se faz necessário explanar em que consiste o livre-arbítrio e a liberdade e qual a diferença existente entre ambos. Em primeiro lugar, o bispo de Hipona afirma categoricamente que o ser humano é portador de uma vontade individual.16 Ele a denomina de liberum arbitrium. Segundo sua linha de raciocínio, ela é que faz os homens responsáveis por 15 Conf. X, 43. 68. 16 Cf. Conf. VII,3. 60 seus atos. Essa faculdade constitui, para o Santo teólogo um dom extraordinário que o Criador concedeu à criatura racional.17 Para Santo Agostinho, o homem possui uma vontade que em si mesma não tem nada de bom ou ruim. Ela torna-se péssima ou boa de acordo com a opção que o ser humano faz. As reflexões e conclusões do bispo de Hipona, sobre o papel do livre arbítrio no que diz respeito as coisas que o homem deve fruir ou utilizar, trouxeram uma profunda reviravolta. Até então, predominava a tese de Aristóteles segundo à qual o exercício da vontade comportava, necessariamente, uma ação na polis. Já o doutor de Hipona defende que a capacidade da vontade de escolha está associada ao âmbito da interioridade humana. Isso veio significar que a liberdade é algo que deve ser vivido em primeiro lugar no interior do homem. Antes de executar uma ação, ela já fora decidida no foro da consciência, ou seja no seu interior. Contudo, não se pode discorrer sobre a vontade no pensamento agostiniano sem falar sobre o mal. O problema da origem do mal dominou sempre as especulações acadêmicas de Santo Agostinho. Ele desejava saber onde se encontravam as razões do mal. Partindo do princípio de que Deus era Bom, buscar saber onde surgiu a terrível realidade do mal. Certamente que o santo teólogo hiponense ouvira desde a terna infância de sua mãe Mônica que um dos atributos de Deus era a bondade. Diante desse ensinamento, o santo pastor se sentia perplexo quando se deparava com o mal, tendo em vista que, durante vários anos de sua vida, ele próprio aderira ao mistério da iniqüidade. Como se sabe, foi esta sua inquietação que o levou a ingressar na seita dos maniqueus na tentativa de descobrir a origem do mal. Donde nasce portanto, o mal, a infelicidade? Essas interrogações foram por muito tempo angustiantes para o santo hiponense. Por fim chegou a essa constatação: “Nenhuma natureza, absolutamente falando, é um mal. Esse nome não se dá senão a privação do bem”.18 Foi a partir dessa descoberta que Santo Agostinho verificou que o mal não tem uma essência ontológica. Ele veio à luz em conseqüência da vontade que se apartou do bem. 17 Cf. De Lib. Arb. II, 18. 18 De Civ. Dei XI, 22. 61 “Deus, autor das naturezas, não dos vícios, criou o homem reto; mas, depravando-se por sua própria vontade e justamente condenado, gerou seres desordenados e condenados”.19 É nesta linha de raciocínio que o exímio teólogo de Hipona distingue claramente a liberdade do livre-arbítrio. A liberdade, no pensamento Agostiniano, não é escolha é mergulho no Bem. Só é verdadeiramente livre quem se submete às leis de Deus. A verdade absoluta é Deus, somente nele o homem vive em abundância e desfruta da liberdade.20 Santo Agostinho sempre defendeu a liberdade humana. Segundo ele, a mesma é decorrente da filiação divina. Quando o ser humano afasta-se de Deus, sua liberdade torna-se libertinagem. Infelizmente, isso acontece freqüentemente trazendo consigo graves problemas na vida pessoal e social. A liberdade para o pastor hiponense só se realiza na medida em que o homem aceita o senhorio de Deus na vida. É evidente que da vivência autêntica da liberdade depende a relação que irá travar na sociedade com seus semelhantes. Quando vive sob a regência das leis divinas redundará em benefício da coletividade, ou seja buscará com todas as forças atingir o bem comum. Quando se entrega às paixões sacrifica a liberdade acarretando mal estar na comunidade ameaçando a paz. Para o santo pastor de Hipona é da liberdade, acompanhada pela graça que depende o bom relacionamento entre os membros da sociedade. O livre-arbítrio é a possibilidade de escolher. Para Santo Agostinho, ele é o responsável pela perdição ou a desgraça de alguns. O fato é que muitos escolhem seus próprios caminhos e esquecem ou desprezam o Criador. Com isso, comprometem sua felicidade e a de seus semelhantes, pois a paz não é possível sem o auxílio divino. Vejamos as palavras do Santo pastor que revelam essa realidade: “Por isso, do mau emprego do livre-arbítrio originou-se verdadeira série de desventuras, que de princípio viciado, como se corrompido na raiz o gênero humano, arrastaria todos, em concatenação de misérias, ao abismo da morte segunda, que não tem fim, se a graça de Deus não livrasse alguns”.21 Dessas palavras, depreende-se que embora o livre-arbítrio tenha sido criado por Deus ele é manipulado pelo ser humano. Muitas vezes, ele é transformado em instrumento de condenação se não for iluminado e assistido pela graça de Deus. Sem a 19 Ibid., p. 109. 20 Cf. De Lib. Arb. II, 14. 21 De Civ. Dei XIII, 14. 62 luz do alto, é impossível que o livre-arbítrio escolha a via do bem.22 Se o homem não abraçar a reta ordem de Deus, que consiste em amá-lo sobre tudo, não terá condições de escolher entre o bem e o mal. Com isso será escravo e não livre. Santo Agostinho assegurou com bastante firmeza que, diferentemente da doutrina dos pelagianos, a mensagem cristã trouxera um novo significado para a liberdade. Cristo, quando se encarnou, tornou-se a própria graça que o homem necessita para fazer o exercício de sua liberdade. Isso os pelagianos não contavam, pois eliminaram a graça de Cristo do seu sistema de raciocínio. Para eles, a vontade não entra em duelo com nada, ela é executante. Daí, não necessita do auxílio divino. Já dentro da doutrina cristã se trava um terrível atrito entre os graus de vontade, a graça e as paixões. A origem dessa desordem entrou no mundo com o pecado original que veio a enfraquecer a vontade. O santo hiponense fez sempre questão de declarar que a vontade humana não é onipotente; ela carece no fundo da poderosa e eficaz força de Cristo para vencer as propostas e insinuações do mal e optar pelo bem. Aqui neste ponto vem à tona o papel desempenhado pelo amor. Quando ele está ancorado em Deus, conduz e orienta o homem para o Sumo-Bem. Sobre isso, o santo pastor declarou: “Trata-se de um apetite natural, pressuposto pela vontade livre, que deve, iluminada pela luz natural da razão, orientá-lo finalmente para Deus, SumoBem.”23 3.2.2 A Relação entre o individual-social No pensamento agostiniano, a vontade só causará dano ao homem, desviando da felicidade, se ela não for conduzida pela graça divina. De fato, existe para o santo pastor esta hipótese do ser humano fecham-se à graça e tentar construir ou fazer suas opções sem Deus. Quando isso se torna realidade, a felicidade está ameaçada. Aliás, Deus é a felicidade por excelência. Quando se tente afastar-se dele já começa a desviar-se da felicidade. Pois, Deus é quem dá discernimento e sabedoria aos homens para eles amarem o que realmente deve ser amado. Na linguagem agostiniana, esta maneira de proceder chama-se reta ordem do amor. Ela consiste em viver 22 Cf. De Lib. Arb. II, 19 23 Ep: 140, 3. 4. 63 intensamente o preceito divino “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. Essa norma evangélica dá equilíbrio ao homem para viver sua individualidade sem prejudicar o seu relacionamento social. Guiado pela graça o ser humano ama o Criador e a si mesmo. Porém, em Deus ama todos os seus semelhantes. O bispo de Hipona afirma que o livre-arbítrio ocupa um lugar fundamental na distinção e escolha entre as coisas a serem amadas e as que devem apenas ser usadas.24 O livre-arbítrio, neste contexto, é o princípio da moral interior, já que é dentro do homem que sua capacidade de escolher é posta à prova. Todo dia é colocado diante de cada ser humano um quadro de coisas ou objetos que em si são bons, contudo são inferiores. Atraídos pelas aparências, alguns homens valorizam excessivamente estes bens perecíveis e desprezam os superiores, dos quais Deus ocupa o primeiro lugar. Infelizmente, isso ocorre com freqüência e disso Santo Agostinho tinha consciência. Ele experimentará na pele o que isso significa: “Quando a vontade, abandonando o superior, se converte às coisas inferiores, torna-se má, não por ser mau o objeto, mas por ser má a própria conversão”.25 Na verdade, da adolescência à idade adulta, o bispo de Hipona mergulhará nas coisas inferiores antepondo-as às superiores cujo ápice era o próprio Deus. Somente depois de muitas desilusões e frustrações é que, assistido pela graça foi libertado da inversão do amor. Baseado na sua vivência pessoal, Santo Agostinho veio a concluir que o mal tem sua origem no amor desordenado. Aliás, na Cidade de Deus, o pastor de Hipona menciona com freqüência que não se deve buscar as causas do mal na beleza dos objetos, mas nas opções ruins que o homem é capaz de fazer. Tudo depende da maneira como ele ama e do direcionamento que se dá ao amor: “Assim, a avareza não é vício do ouro, mas do homem, que ama desordenadamente o ouro, por ele abandonando a justiça, que deve ser infinitamente preferida a esse metal. E a luxúria não é vício da beleza e graça do corpo, mas da alma, que ama perversamente os prazeres corporais, desprezando a temperança...”26 24 COSTA, Marcos Roberto Nunes. O Amor: Princípio da Moral Interior em Santo Agostinho. Perspectiva Filosófica, V. 4, n. 9, p.117-121, Jul./Dez. 1996. 25 Cf. De Civ. Dei XII, 6. 26 De Civ. Dei XII, 8. 64 O teólogo hiponense classifica o amor em duas formas. Para ele, há o amor menor que é aquele dirigido para os bens mutáveis como os alimentos, o vestuário, o ouro e a prata. São bons em si mesmos, porque foram criados por Deus, mas têm um valor relativo ou médio. O uso que se deve fazer deles nunca poderá tornar-se abusivo. Esses bens precisam ser amados com discrição. Quando se fala em amor maior significa colocar Deus na primeira ordem do amor, ou seja, amá-lo acima de tudo e de todos. Viver de acordo com esse amor representa a submissão da criatura para com seu Criador absoluto. Para o exímio teólogo, isso é usufruir da liberdade no mais alto grau, aliás só é verdadeiramente livre na lógica agostiniana quem se une ao SumoBem que é Deus, sendo-lhe submisso. 3.3 A Cidade Celeste e a Terrestre 3.3.1 A Origem das Duas Cidades O Santo pastor de Hipona misticamente divide a sociedade em dois grupos que ele classifica de Cidade de Deus e Cidade Terrestre. Ambas tiveram origem distintas. Enquanto a Cidade Celestial teve sua inspiração no amor do Sumo-Bem que é Deus, a Cidade Terrestre fora edificada sobre o amor próprio, a soberba: “Dois amores fundaram, pois, duas Cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela busca a glória dos homens e tem esta por máxima glória a Deus”...27 Nesta separação que Santo Agostinho faz entre aqueles que se deixam conduzir pelo amor do Criador e os que são movidos pelo amor de si mesmos está incutida a noção das categorias metafísicas do bem e do mal.28 Trata-se na verdade, de duas atitudes que podem ser tomadas pelas criaturas com relação em primeiro plano ao Criador. De fato, da aceitação ou da recusa ao senhorio de Deus depende a sorte individual e social dos homens. Qualquer opção que o ser humano faça pelo Sumo- 27 De Civ. Dei XIV, 28. 28 Cf. COSTA, Marcos Roberto Nunes. A Dialética das Duas Cidades. Veritas, v. 43, n. 4, p. 1053-1069, 1998. 65 Bem que é Deus ou pelo mal que é seu orgulho acarretará sua felicidade eterna ou do contrário, sua infelicidade. O santo doutor hiponense estabelece claramente que os homens foram criados para viverem em comunhão com a verdade absoluta que é Deus, tal como os anjos permanecem unidos ao Criador numa felicidade sem fio. Todo ser humano é chamado para participar da comunhão do amor. Ao definir em que consiste o bem e o mal, que para Santo Agostinho está condicionado à aceitação ou rejeição da proposta de Deus, o santo teólogo insiste que não há nenhuma dicotomia entre o espírito e a matéria. Pelo contrário, ele reconhece que ambos foram dados por Deus ao homem. Portanto, podem viver em inter-relação sem prejuízo mútuo. Aliás, esse desejo já existia desde o início da fundação do mundo. Não foi a matéria que tornou o homem ruim, mas a sua vontade que se rebelou contra Deus. “O homem não se tornou semelhante ao diabo por ter carne, de que o diabo carece, mas por viver segundo si mesmo, quer dizer segundo o homem”.29 Quando o santo hiponense usa a expressão carne, ele está se referindo não à matéria em si, mas à tendência do homem de optar por si mesmo. Essa para o pastor de Hipona, é a raiz de todos os males que repercutem na vida individual e social. Já, viver segundo o espírito é permanecer em submissão a Deus, ou seja, fazer sua vontade.30 Tendo em vista que não existe oposição concreta entre o espiritual e o material, entre a Cidade dos anjos e a Cidade do homem, surge espontaneamente uma interrogação. De onde surgiu, então, a Cidade Terrestre, símbolo daqueles que pretendem viver sem Deus? A resposta é clara, ela originou-se do livre-arbítrio do ser humano. De fato, pela sua escolha o homem trouxe à existência a Cidade Terrestre que é composta por homens dominados pelo orgulho. A filosofia deles se resume em viver no egoísmo. Não buscam o Criador e nem seus semelhantes. Mergulham no século e nas suas vaidades e se esquecem do fim para o qual foram colocados na terra. Deus deu a vida ao homem para ele colaborar na construção da civilização do amor. É somente dentro desta perspectiva que a vida humana encontra seu verdadeiro significado. A procura do bem-comum constitui uma preocupação constante do cidadão da Cidade Celeste. Peregrinando na penumbra do tempo, vive o aqui e o 29 De Civ. Dei XIV, 3. 30 Ibid., p. 135. 66 agora caminhando na esperança da glória futura.31 Essa meta escatológica não exclui o interesse pelos assuntos de ordem social e política. Ao pensar na eternidade, o homem de boa vontade se empenha em dar sua parcela de contribuição para que este mundo seja melhor. O santo doutor enfatiza que a felicidade humana tem seu início nesta vida, contudo só terá sua plenitude na eternidade.32 A Cidade Celeste abriga no seu seio uma multidão de homens e mulheres que vivem em sintonia profunda com Deus. Os anjos são os primeiros membros desta Cidade, foram criados para dar glória ao Criador, como homem: “Uma é a sociedade dos homens piedosos e a outra dos homens ímpios, cada qual com os anjos de seu grêmio, nos quais precedem, ali o amor a Deus e aqui o amor a si mesmo”. 33 Há quem diga que esta divisão que Santo Agostinho fez da humanidade em dois grupos fora influenciada ainda pela sua passagem pelo maniqueísmo. Ele conservara na sua mente uma visão dualista do homem, como ele deixa transparecer na obra Cidade de Deus. Depois de sua conversão, contudo, ele superou esta discrepância imaginária entre corpo e alma, pregada pela seita dos maniqueus. O termo Cidade em Santo Agostinho não se limita apenas por designar um determinado grupo de pessoas que vivem e se relacionam dentro de um território geográfico. Quando o santo pastor de Hipona emprega este termo, ele se refere ao Estado e até mesmo a um Império. Como já se viu ao longo deste trabalho quando o hiponense escreveu a Cidade de Deus, ele tinha diante de si a história da humanidade, desde as origens mais especificamente, a travessia do Império Romano, seu surgimento, crescimento, apogeu e derrocada.34 O teólogo hiponense, apoiado na Sagrada Escritura, descreve a partir do livro do Gênesis, a origem comum das duas Cidades ou sociedades que peregrinam no tempo. Adão foi o pai de ambas. A divisão fora ocasionada pelos próprios filhos Abel e Caim. Este último se rebelou contra seu irmão tirando-lhe a vida por inveja. A partir deste seu ato fratricida, nasceu a Cidade terrena composta por homens e mulheres dominados pelo amor próprio e pelas paixões desordenadas. Os cidadãos da Cidade 31 Cf. De Civ. Dei XVII, 20. 32 Ibid. , p. 309. 33 De Civ. Dei XIV, 13. 34 Cf. Ibid., p. 107 et. Seg. 67 Terrestre buscam suas forças e inspirações apenas na natureza, que em si não tem consistência, pois foi ferida pelo pecado. Os membros da Cidade Celeste confiam e agem impulsionados pela graça de Deus. Sobre este aspecto, Santo Agostinho lança as bases da esperança cristã. Roma e o Império Romano ruíram porque estavam edificados sobre a soberba. De fato, foi a causa de todos os vícios e desatinos dos romanos. Eles se gabavam de suas próprias façanhas e prestavam culto aos deuses para se justificarem de suas atrocidades morais e sociais. Pois dentro do Império Romano como já se viu anteriormente eram cometidas diversas injustiças muitas vezes camufladas de justiça. Isso o próprio Santo Agostinho denuncia em vários trechos da obra Cidade de Deus. 35 O santo bispo de Hipona verificará que no Império Romano não predominava muito antes de sua destruição o interesse pelo bem comum e nem muito menos pela prática da justiça. Já não reinava a tão necessária concórdia, pois os membros da sociedade a começar pelos governantes tinham investido a reta ordem do amor. Aliás, Santo Agostinho afirma que a justiça consiste em primeiro lugar em dar a Deus, o Criador, o espaço que ele merece como Ser absoluto. Esse princípio não era levado a sério pelos povos romanos. Os governantes estavam mais interessados apenas em si mesmos e nos seus interesses pessoais. Deram largas ao mundo das paixões que já haviam dominado de tal modo seus pensamentos. Nota-se que foi nestas circunstâncias que Roma caíra sobre o peso de seus numerosos atos corruptos que lhe acarretaram sua auto-destruição. Na visão agostiniana, os membros do Império Romano, na sua maioria, sobretudo entre os que detinham algum tipo de poder, se tornaram partidários da Cidade Terrestre. Adotaram os mesmos princípios da vida daqueles que se revoltaram contra a verdade suprema que é Deus. Com isso, passaram a viver exclusivamente mergulhados no individualismo dominados pela avareza, cobiça e idolatria. Tanto assim que o império e a Cidade de Roma eram para o teólogo hiponense símbolo ou continuação da Babilônia. Segundo Santo Agostinho, esta Cidade era o reduto de todos aqueles e aquelas que só vivem segundo a carne. A vida no Espírito representa os homens e as mulheres que pautam suas atitudes de acordo com a vontade de Deus. Permanecem unidos ao seu Senhor em todas as circunstâncias sem afastarem-se de seu amor infinito. Santo Agostinho chama de Jerusalém do alto a Cidade à qual fazem parte estes cidadãos.36 Um dia participarão em plenitude dela, contemplarão, experimentarão a felicidade verdadeira. 35 De Civ. Dei. XIX, 5. 36 Cf. HAMMAN, A - G. op. Cit. P. 307. 68 É desejo de Deus consolidar e marcar com seu Espírito os projetos e realizações de seus filhos. Contudo, não força e nem coíbe suas criaturas a abrirem seus corações para Ele. Deus propõe seu amor, sua amizade e companhia, mas não obriga ninguém a segui-lo e nem a obedecer seus preceitos. Em meio à desolação e nostalgia em que muitos homens e até cristãos se encontravam pela ruína do Império Romano, a Cidade de Deus se transformou num livro de Esperança. Na verdade, o santo teólogo tenta mostrar na sua obra que aqueles que confiam em Deus não se desesperam pois ele é segurança e paz. Assim como Roma e o Império Romano findaram, estes que eram tesouros preciosos mas perecíveis, os outros bens mutáveis também passaram. Somente os valores que sustentam a Cidade Celeste permanecerão, pois Cristo que é o Senhor traz consigo a esperança de um reino que não terá fim. É dentro deste contexto que se pode afirmar: “Tal origem tal declínio”. Como se constatou ao longo deste capítulo, a Cidade Terrena, da qual o Império Romano é representante, fora construída sobre a areia ou o barro de sua própria inépcia. Não tinha condições de subsistir. Estava destinada, desde o início, para o fracasso. Desprezaram aquele que verdadeiramente podia lhe dar sustentação. No pensamento agostiniano, tudo que nasce na terra sem o Sumo-Bem como alicerce que ele não hesita em chamar de Deus, está condenado à destruição. Para o santo pastor, o homem não pode construir sua existência sem o amor dei37, pois deste modo colocará em risco seu desejo de paz e felicidade. Para Agostinho, o caminho da verdadeira concórdia individual e social passa necessariamente pela experiência do amor, da doação. Isso só se torna possível quando se vive em comunhão profunda com Deus. O contrário desta proposta é o amor sui que repele o Sumo-Bem e tenta fixar suas bases em si mesmo, e que acaba menosprezando os demais. Quando se detém a comentar a fundação e o desenvolvimento da Cidade Terrestre, Santo Agostinho mostra o quanto no seio dela existem guerras e discordâncias. Na verdade, não pode haver entendimento e comunhão onde Deus não é o centro. Como sendo o amor por excelência, Ele alimenta e dá vida àqueles que lhe são submissos. Com isso, as pessoas e as instituições se amam e se ajudam mutuamente superando suas diferenças em prol de um objetivo comum que é a paz. Quando Deus não encontra abertura e predomina o amor a si mesmo, então se perpetua uma série de lutas e guerras. O teólogo hiponense, como se sabe, quando se 37 Cf. NEDEL, José. O Homem e a História em a Cidade de Deus. Cultura e Fé, v. 74, p. 34-35, Jul. / Set. 1996. 69 debruça sobre o desenrolar da Cidade Terrestre coloca como exemplo não só Abel e Caim. Ele cita também o caso dos irmãos Rômulo e Remo que lutaram entre si até que um assassinou o outro movido pelos sentimentos de inveja e ciúme.38 Com estes testemunhos da história ocorridos para mostrar a própria divisão que existe entre os membros da Cidade Terrestre, Santo Agostinho quis salientar mais uma vez a impossibilidade de existir paz duradoura entre os cidadãos da polis que vivem como se Deus não existisse. 39 Não é difícil encontrar em toda a história da humanidade os vestígios dessas Cidades. Eles perpassaram os séculos. Não se pode deixar de reconhecer no desfecho destas duas Cidades a caminhada pessoal e comunitária de todos os povos. Tudo depende da direção que se dá ao amor. O amor de Deus conduz os seres humanos para a felicidade temporal que é a paz e a concórdia. Elas são adquiridas pelo interesse em se buscar o Bem Comum. A paz definitiva que só terá sua plenitude na Jerusalém celeste depende da abertura a Deus e do empenho com que os homens se dedicam a antecipar aqui na terra a proposta do reino de Deus. Aliás, segundo a doutrina do santo teólogo de Hipona, o papel da Cidade Celeste é conquistar os homens para fazerem parte do seu grêmio, ou seja, atrair todos para serem promotores da paz.40 O homem, para Santo Agostinho, vive unido a polis. Da opção que ele faz pelo “amor Dei” está ligado o progresso material e espiritual da Cidade. Na filosofia Agostiniana, não existe a hipótese de se pensar no homem sem inseri-lo num contexto social.41 A Cidade Celeste quando procura gerar filhos para si, ela o faz na esperança de levá-los a desfrutar da paz verdadeira, enquanto peregrinam neste mundo e um dia alcançarem a vida eterna. Não se deve esquecer que o maior mal para o pastor de Hipona é a morte eterna. Para ela, se encaminham todos os cidadãos da Cidade Terrestre que se afastaram do verdadeiro Deus que podia livrá-los dela. Mas eles preferiram os bens mutáveis provisórios desprezando os tesouros imutáveis. Poderiam usar as riquezas desta terra sem menosprezar o Criador e seus semelhantes. Contudo, persistiram em adorar as criaturas ao invés do autor e consumador delas. Daí escolheram sua própria ruína, vivem neste mundo como se ele fosse eterno. A glória do soberano Deus não lhes interessa só se preocupam em gozar e se divertir até as últimas conseqüências. O futuro não é objeto de suas solicitudes. 38 Cf. De Civ. Dei XV, 5. 39 Ibid., p. 411. 40 Ibid., p. 409. 41 Ibid., p. 93. 70 “Os príncipes daquela Cidade comiam de madrugada, ou seja, antes da hora devida, porque não esperavam a felicidade real no século futuro, a verdadeira, desejando ser felizes quanto antes com a felicidade do mundo”.42 3.3.2 Fins das Duas Cidades Conforme se notou no tópico anterior, desde o seu surgimento a Cidade de Deus e a terrena se distinguem pelo amor sobre o qual ambas foram edificadas. A Cidade de Deus é movida pelo amor do seu Criador que a conduz para a prática do bem. Nela seus membros procuram viver não para si, mas se desdobram pelo bem comum. Já os cidadãos da Cidade terrena são demasiadamente centrados no amor próprio que os distanciam de Deus e dos interesses da coletividade. Se o amor que as conduz é diverso, resulta naturalmente que as duas possuem fins diferentes, enquanto a Cidade de Deus anseia pela paz definitiva com Deus para sempre na eternidade. A Cidade terrena almeja e trabalha apenas por uma paz temporal transitória que se esgota aqui mesmo nesta terra.43 O santo pastor de Hipona deixa claro, no decorrer da Cidade de Deus, a idéia de que o Bem por excelência que o homem deve possuir é Deus. Andar com Ele durante a vida sobre a terra já é um prenúncio da plenitude sem fim. Essa é a realização máxima do ser humano. O doutor hiponense chama de vida eterna a concretização dessa verdade. Contudo, afastar-se de Deus é desviar-se da felicidade no aqui e agora começando a morrer. De fato, para o doutor da graça, a fonte da vida é Deus.44 Deste raciocínio do santo pastor, se percebe que sua doutrina é profundamente marcada pelo caracter transcendente da vida. No pensamento agostiniano, tudo que o homem de bem faz está voltado para a eternidade. Ele acredita piamente que o ser humano por ser imagem e semelhança de Deus possui uma centelha divina. Daí tudo que ele faz está estreitamente vinculado à eternidade. Não se trata de menosprezar a vida e nem as atividades terrenas. Pelo contrário, trata-se de valorizá-las dando-lhes pleno significado. Na doutrina agostiniana, o homem deve agir tendo diante de si seu fim último que é abraçar a Deus, ou seja, felicidade sem 42 De Civ. Dei XVII, 20. 43 Cf. De Civ. Dei XIX, 14. 44 Ibid., p. 110. 71 fim. Se o homem vive em sociedade e não esquece sua meta definitiva, contribui para o aperfeiçoamento da comunidade de modo intenso.45 As considerações provindas do pensamento da vida eterna dá consistência aos ideais de construção de um Estado justo. É bem o contrário do que alguns afirmam dizendo que a vida de adesão a Deus e os princípios cristãos alienariam o ser humano de suas responsabilidades sociais. Ao longo da história quantas vezes constatou-se que a busca de Deus, e por conseguinte, o encontro do homem com Ele fez desabrochar uma vontade de renovar o triste quadro das injustiças sociais, das guerras e violações dos direitos dos povos. As duas cidades vivem no tempo, no mundo, porém marcham para fins diferentes. A Cidade Terrestre terá sua conclusão aqui mesmo na terra, pois depositou suas expectativas e esperanças nos bens mutáveis. Já a Cidade Celeste tem em si o germe da vida eterna. Seus cidadãos nascem, crescem e se multiplicam no mundo terreno mas olham para a eternidade. Usam dos bens materiais e das demais criaturas transitórias, mas não se apegam a elas desprezando o Criador. Pode-se dizer que a Cidade Celeste ultrapassa o limiar do tempo, enquanto a terrestre ou dos ímpios termina aqui mesmo, dentro da temporaneidade da matéria. Enquanto a primeira é pautada pelos valores eternos, a segunda nasceu e dá seus passos movida por ideais e propósitos puramente terrenos.46 Vejamos o que o próprio Santo Agostinho fala sobre os fins das cidades: “Na paz final, entretanto, que deve ser a meta da justiça que tratamos de adquirir aqui na terra, como a natureza estará dotada de imortalidade, de incorrupção, carecerá de vícios e não sentiremos nenhuma resistência interior ou exterior, não será necessário a razão mandar nas paixões, pois não existirão. Deus imperará sobre o homem e a alma sobre o corpo. E haverá tanto encanto e felicidade na obediência quanto bem-aventurança na vida e na glória. Tal estado será eterno e estaremos certos de sua eternidade. Por isso, na paz dessa felicidade e na felicidade dessa paz consistirá o soberano bem”.47 O santo pastor de Hipona diz que estas duas cidades peregrinam sobre a terra. Elas andam misturadas pelos corpos. Vivem as mesmas vicissitudes, porém estão separados pelas vontades. Como já se viu em outra circunstância, a Cidade Celeste procura identificar-se com a vontade do Criador que é o amor que revitaliza e constrói. Já a Cidade Terrestre suplanta a vontade de Deus para fazer reinar seu 45 HAMMAN, A - G. op. Cit. P. 303. 46 Cf. De Civ. Dei. XV, 17. 47 Ibid., p. 422. 72 próprio egoísmo. A grandeza do seu individualismo é tão exacerbada que ela se julga portadora de todas as virtudes. Marcada pelo espírito de auto-suficiência, os membros da Cidade terrena vivem apenas para dar glória a si mesmos. Desse modo, a tão almejada paz, anseio de todos os cidadãos, torna-se impraticável. Para se obter a paz é fundamental que haja o domínio das paixões e isso não é conseguido sem o auxílio divino. Nisto, o santo doutor enfatiza bastante a necessidade do homem obedecer ao Criador: “Por isso, enquanto não dominarmos as paixões, não há perfeita paz, porque os que resistem se debatem em perigosa peleja e os vencidos ainda não têm assegurada a vitória, mas requerem vigilante opressão. Nestas tentações, das quais a Escritura resumidamente diz: ‘Não é, porventura, contínua tentação a vida do homem sobre a terra.’”48 Santo Agostinho, no seu realismo, não esconde que haverá justa provação para aqueles que se vangloriam de si e menosprezam a Deus. Cultuar o verdadeiro Deus para o doutor hiponense é algo indispensável para que a Cidade Terrestre possa suplantar o pecado das depravações morais, pois do contrário não será possíveis harmonia interior e exterior dos membros da sociedade. Desse modo, não se terá a reta ordem das coisas. “Por mais louvável que pareça o império da alma sobre o corpo e da razão sobre as paixões, se a alma e a razão não rendem a Deus a homenagem de servidão que Ele manda, tal império não é verdadeiro e justo.”49 Não somente isto, mas tal estado não atingirá a paz aqui enquanto se desenvolve e nem na outra vida junto da felicidade sem fim que é Deus, Senhor absoluto do universo. Para Santo Agostinho, a profunda frustração dos homens que aderiram à Cidade Terrestre é a ausência da experiência do amor autêntico. Dessa carência decorre a tristeza, pois no princípio o homem foi criado para o amor, ou seja, sendo amado reveste-se de sua dignidade de Filho de Deus. Pelo contrário, quando não ama, perdese no vazio de sua própria insignificância. A desilusão acontece porque todos são chamados para viver com Deus eternamente, mas alguns trocam o imutável pelo 48 Ibid., p. 421 49 De Civ, Dei XIX, 25. 73 mutável ocasionando a perda da paz temporal, quando os cidadãos da Cidade Celeste já participam de certo modo dos benefícios da paz definitiva. No pensamento agostiniano, as duas cidades vivem mescladas e entrelaçadas no tempo. De fato, os homens atuam na história. É nela que podem e devem construir seus projetos terrenos. Contudo os cidadãos que se deixarem conduzir pelos preceitos divinos têm consciência de que estão marchando para a pátria eterna. Diferentemente dos membros da Cidade Terrestre que só pensam no aqui e no agora do tempo, os peregrinos da Cidade Celeste trabalham neste mundo com os olhos fixos no festim da eternidade. Apesar das críticas que o santo teólogo faz ao Império Romano, ele não é contra as instituições cívicas e políticas. O que ele denuncia e critica com firmeza são os desvios que o mesmo praticará ao longo dos séculos. Santo Agostinho reconhece o valor, a importância das atividades terrenas do Estado. Em si o poder público é bom foi criado com ótimas intenções. Pode muito bem salvaguardar a paz e a concórdia. Aliás, o bem comum da sociedade deve ser uma preocupação constante dos governantes. O problema é quando a sociedade, a começar pelos que exercem cargos públicos, se subtrai do poder de Deus. Gera-se uma total desordem no convívio social que a vida torna-se insuportável. O homem da Cidade Terrestre volta-se contra o Criador e doador de toda autoridade esquecendo-se da verdade apregoada por S. Paulo, e que Santo Agostinho confirma: “Não há autoridade que não provenha de Deus”. Dessas palavras, depreende-se que somente quando está unido a Deus é que o homem aprende realmente a governar. A autoridade só encontra plena consistência quando vive alimentada da fonte que em primeiro plano é Deus. Sem Ele, a autoridade transforma-se em autoritarismo. O cidadão da Cidade Celeste busca neste mundo a salvação. Para isso, procura incessantemente cumprir todos os seus deveres sociais. Somente quando estes se tornam contrários a sua fé e a consciência, é que deve resistir ao cumprimento desses deveres. O pastor de Hipona é de um realismo impressionante. De fato, ele sabe que enquanto peregrinam neste mundo os cidadãos de ambas as cidades não podem apartar seus corpos. Permanecem unidos pelas obrigações e adversidades da vida, sujeitos aos mesmos males e necessidades do tempo presente.50 Porém, interiormente, pelo desejo, pensam e agem de maneira diversa com relação ao uso dos próprios bens 50 Cf. CHEVALIER, J. História del Pensamiento 9, p. 355. 74 materiais e na conservação da concórdia e da paz. Os cidadãos da Cidade Terrestre usam dos tesouros deste mundo como fim absoluto de tudo. Já os cidadãos da Cidade Celeste lidam com os bens terrenos como meios e não fim em si. A paz para a qual todos tendem, quer sejam membros da Cidade Terrestre ou Celeste, pode ser experimentada por ambos. Contudo, os membros da Cidade Celeste sabem que a paz da alma, que é a mais importante, só será vivenciada por eles, pois ela é fruto do domínio das paixões. Os membros da Cidade Terrestre gozarão apenas e quando muito da paz terrena imperfeita. Isso, Santo Agostinho deixa transparecer na Cidade de Deus: “O uso dos bens necessários a esta vida mortal é, portanto, comum a ambos os casos, mas no uso cada qual tem fim próprio e modo de pensar muito diverso do outro. Assim, a Cidade terrena, que não vive da fé, apetece também a paz terrena; porém, firma a concórdia entre os cidadãos que mandam e os que obedecem, para haver, quanto aos interesses da vida mortal, certo concerto das vontades humanas. Mas a Cidade Celeste, ou melhor, a parte que peregrina neste vale e vive da fé, usa dessa paz por necessidade, até passar a mortalidade, que precisa de tal paz.”51 Dessas palavras, se entende que entre os membros das cidades celeste e terrestre têm muitas coisas em comum. Possuem corpos e necessidades iguais. Mas, enquanto os primeiros trabalham e sofrem, pensam no futuro feliz que os aguarda. Já os últimos atuam no mundo como se ele fosse permanente. Daqui decorrem todas as suas desilusões e frustrações. Ao descrever os caracteres da Cidade Terrestre, o pastor hiponense deixa entrever que ele a identifica com a história de todas as civilizações que tiveram sua origem em si mesmas. Como já foi visto anteriormente, o teólogo de Hipona cita alguns exemplos dessas construções que foram edificadas sem o fundamento divino. Dentre estes, ele aponta a fundação e o desenvolvimento do Império Romano. Contudo, o hiponense não se limita apenas a estas duas realidades amplamente comentadas pelos historiadores.52 Ao longo do relato agostiniano sobre a Cidade Terrestre, encontra-se uma referência clara concernente a todos os impérios antigos. Aliás, uma teologia da própria história. Nela está embutida uma crítica e uma explicação de todas as desventuras da humanidade. É sempre a teimosia de um povo em querer construir a 51 De Civ. Dei XIX,17. 52 CARVALHO, J. Vaz. Dependerá Santo Agostinho de Paulo Arósio? –Revista Portuguesa de Filosofia, v. 1, no 2, p. 142-153, Abr./Jun. 1955. 75 sua felicidade e progresso sem Deus. É neste contexto que a auto-suficiência, que no pensamento de Santo Agostinho chama-se soberba, predomina ao invés da humildade. O simbolismo das duas cidades tem como base a longa travessia do povo de Deus. Nela o santo doutor contemplou as diversas etapas e fases da história humana. O povo hebreu que foi fiel à crença do único Deus representa a Cidade Celeste, cujos membros se esforçam por viver sob a lei divina, apesar dos perigos e até mesmo das quedas e desvios durante a caminhada. O elemento que distinguia o povo eleito no meio dos outros povos que o circundava era a adoração ao único Deus, enquanto os povos vizinhos prestavam cultos a vários deuses. A personificação desta realidade era o Império Romano, cuja sede era a Cidade de Roma. Nela existiam diversos templos dedicados a diferentes divindades. Embora, como se sabe, trata-se de uma leitura alegórica da realidade, a obra Cidade de Deus apresenta uma censura a todo projeto humano que não se abre ao transcendente. Ao traçar o quadro do mundo antigo, Santo Agostinho levanta o problema político dos Impérios Romano e Assírio-babilônico. Ambos são símbolos de sociedades fracassadas que mesmo obtendo no início um aparente progresso social terminaram por naufragar, pois tinham seus alicerces sobre a areia do orgulho humano. A tirania e a injustiça passaram a ser praticadas nestes impérios. A razão que ocasionou tudo isso foi a falta de submissão dos imperadores e de seus súditos ao Deus verdadeiro. Como já se viu no tópico anterior, a natureza humana por si só é incapaz de viver e atuar em prol do outro, enquanto não mergulhar no Bem Absoluto. Regidos por princípios geradores e condutores diferentes, as duas cidades vivem uma ao lado da outra, contudo são duas realidades distintas. Aqui reside o contraste, pois na Cidade de Deus reina a perfeição do amor. Isso deve-se ao fato de que os seus cidadãos se alimentam e rejuvenescem pelo amor de Deus. É nela que todos purificam suas vontades egoístas e rebeldes. Só no amor por excelência se aprende a arte de amar de verdade.53 A deformidade deixada pelo pecado original imprimiu seqüelas na humanidade. Desde então, segundo o exímio pastor de Hipona a prática do amor perfeito tornou-se impraticável. Para Santo Agostinho, somente os membros da Cidade Celeste amam com perfeição. É desse amor e movidos por ele que tentam permear a Cidade Terrestre para inverter o quadro triste das sombras impostas pelas 53 Cf. De Trin., VIII, 12. 76 injustiças sociais.54 Eles provocam insatisfações e até mesmo revoltas e guerras tornando-se fortes impecilhos para a concretização da almejada paz. O pastor de Hipona afirma que a perfeita ordem social só será possível quando os membros da cidade terrena, em primeiro lugar os que governam, se abrirem para a prática dos preceitos de Deus, única garantia de paz. A paz que no pensamento agostiniano é a tranqüilidade da ordem, só será alcançada aqui na terra como meio relativo que antecipa a paz definitiva da Cidade Celeste. Esse é, para o exímio teólogo, o fim para o qual tendem todos os homens.55 Santo Agostinho defende tenazmente que a ordem natural que Deus impôs aos homens é a paz. Ela é o bem comum que os governantes devem buscar e promover. Contudo, o santo pastor não é inocente; ele tem consciência que o homem não pode alcançar este bem para si e seus súditos se não render culto ao Deus verdadeiro. A paz, no pensamento agostiniano, tem certos pressupostos para ser obtida. Nunca haverá paz numa sociedade que pratica a injustiça, onde é negado aos cidadãos seus direitos básicos. Entre estes se encontram o acesso aos meios de subsistência como alimentação, saúde e escola. Quando isso não ocorre ou o acesso torna-se difícil, a paz aos poucos vai se diluindo. Se a autoridade constituída não pratica a justiça, que consiste em primeiro lugar em prestar o culto devido ao Criador, então não pode garantir a paz dos cidadãos. É interessante notar que na doutrina agostiniana a mudança parte do plano superior. Isso quer dizer que as autoridades, ou sejam aqueles que governam, devem dar o exemplo: “Porque ninguém possui mal a justiça, e quem não ama não a possui;... porém, só se possui de direito o que se possui justamente, e só é justo o que é bom...” “É-se, portanto, bom na medida em que se age bem, isto é, se faz o bem, segundo a verdade, a caridade e a piedade”.56 Nesta carta, estão traçadas de modo nítido as virtudes que devem praticar os que têm o dever de salvaguardar a concórdia e a tranqüilidade da sociedade. Mas neste ponto o santo doutor volta a insistir que sem o auxílio da graça é impossível que o governante viva na justiça.57 Sem Deus todos os que foram chamados a exercer o governo correrão o risco de caírem nos vícios. Santo Agostinho tinha plena ciência dessa triste realidade. Aliás, ele estava certo que a raiz das infelicidades individuais e 54 SANTOS, João Marcos Leitão. Agostinho e a Hermenêutica da História, perspectiva filosófica, v. 4, no 8, p. 153-173, Jan./Jun. 1996. 55 Cf. De Civ. Dei XIX, 12. 56 Ep. I53, n. 26. 12. 13. 57 Cf. RAMOS, F. M. T., op. Cit. P. 144. 77 sociais dos homens estava sempre associada à falta ou à recusa do amor de Deus por parte dos governantes e de seus governados. O caos da sociedade é devido, no pensamento agostiniano, ao afastamento da criatura do seu Criador, como ele afirma na sua explicação sobre a fundação das duas cidades. O amor de si mesmo gera o egocentrismo que repercute na vida social. Nela, cada um busca seus próprios interesses esquecendo-se das necessidades do outro. O governante que não aceita o amor de Deus torna-se um oportunista, servindo-se da sua posição apenas para satisfazer seus desejos individualistas. Ao invés de promover o bem comum se limita apenas em adquirir vantagens para si e alguns poucos privilegiados. É segundo esta linha de raciocínio que Santo Agostinho define o homem que vive segundo a carne. Aliás, é nesta perspectiva que na doutrina agostiniana estão bem presentes as duas alternativas: viver segundo a carne ou viver segundo o espírito. 58 A história sempre caminhou entre essas tensões. A atividade política é exercida por homens que experimentam em si essa luta constante. Para o santo hiponense, o político que vive segundo a carne não tem nenhuma chance de praticar a justiça. É impossível que alguém, sem os ditames da lei eterna consiga desvencilhar-se do seu próprio egoísmo. Já o político que vive segundo o espírito é aquele que procura servir, ajudar seus semelhantes a viver com dignidade. Isso, para o exímio teólogo, é possível, basta que a vontade se abra para Deus, abraçando seu amor.59 A base para uma sociedade justa está fundamentada na verdadeira “caritas” que comporta a prática do amor a si mesmo e ao próximo tendo como força motriz o amor divino. No pensamento agostiniano, é somente esse amor que é capaz de renovar o homem e a criação inteira. Só vivendo dele e para ele é que se consolidará uma sociedade realmente justa. Ainda que durante a peregrinação terrena, ela não seja definitiva, pode-se colher no convívio social seus frutos de justiça, solidariedade, fraternidade e paz. O cristão e ainda mais o governante que pratica essas virtudes é uma bênção para a sociedade. E nesta circunstância faz-se necessário citar as palavras do santo pastor que relatam a vida e as qualidades do seguidor de Cristo autêntico: “Este homem, enquanto vive, sabe fazer da convivência uma demonstração de sua generosidade; a presença dos inimigos é a oportunidade para exercitar sua paciência; os outros dão-lhe motivo para praticar o bem; a todos abraça com sua benevolência. E embora não ame as coisas temporais, sabe usá-las e procura ser 58 ABBAGNANO, N. , História da Filosofia, p. 135. 59 De Civ, Dei XI, 28. 78 generoso para alguns homens, se não pode favorecer a todos. Por isso se demonstra predileção a alguns de seus familiares, não é por amá-lo mais, senão porque tem maior confiança e maiores oportunidades. E como não pode resolver os problemas de todos os homens que ama igualmente, faltaria aos deveres da justiça se não atendesse com preferência aqueles que estão mais unidos a ele. A união espiritual é mais forte que aquela que nasce dos tempos e lugares, enquanto vivemos no mundo; mas a união da caridade excede a todos. Portanto, ele ele não se abate com a morte de alguém, porque quem ama a Deus sabe que não perece para ele quem não perece para Deus. Não fica infeliz com a miséria alheia, como não é justo com a justiça dos demais, e não podendo ninguém roubar-lhe nem sua virtude nem seu Deus, nunca lhe falta a felicidade. E, se por acaso o perigo o impressiona, ele vai socorrer ou corrigir, sem perder a paz.”60 A proposta que Santo Agostinho apresenta acerca da justa ordem social não é utópica. Ela encontrou ressonância ao longo de todos os séculos. Contudo o exímio teólogo não esconde que ela comporta a submissão da criatura ao Criador. Como outrora para os pagãos esse ensinamento pareceu absurdo e fora da realidade, hoje a sociedade hodierna mergulhada no consumismo desenfreado e no materialismo, se assusta diante desse ideal apregoado pelo doutor hiponense. Contudo, mais do que nunca ele se faz urgente. Vive-se num tempo em que o amor foi reduzido apenas numa palavra, ou seja, não tem nenhuma ressonância na vida prática. É preciso resgatar o seu sentido, e para isso Deus é fundamental, sem Ele governantes e governados nunca amarão de verdade.

 

Irmão messias

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